volverPara uma menina com uma flor

Um taradinho de quatrocentos anos

Caro Deus: 

Não foi sem muito refletir que resolvi mandar-lhe esta, mormente agora que Você está aí a braços com o velho Churchill, de cuja resposta a um jornalista ainda me lembro, já lá vão dez anos, quando lhe foi perguntado se estava pronto para enfrentar o seu Criador: estava, mas não sabia se o seu Criador estava pronto para enfrentá-lo, a ele, Churchill. Consta, além disso, que Você está planejando grandes reformas no seu serviço de relações públicas... Mas eu, sinceramente, não podia esperar mais, porque na minha qualidade de poeta - e carioca! - sinto-me de certa maneira responsável pelo que está acontecendo. Veja, pois, se Você mete aí um litro de uísque no velho Churchill e aproveita para pensar um instantinho no problema que lhe vou submeter, no sentido não sei se de dar providências - o que contraria o seu modo usual de agir desde que Você mandou seu Filho aqui por estas paragens; de, quem sabe premunir-me sobre o que deve ser feito relativamente à educação do meu jovem Rio, que acaba de completar quatrocentos janeiros, mas que o mais das vezes porta-se como se tivesse quarenta. Eu estou ficando grisalho de pensar no assunto, pois nunca vi menino ao mesmo ternpo tão adorável, e se me permite a palavra chula, taradinho. Taradinho mesmo. 

Que ele é bom menino, disso não resta a menor dúvida: sem falar que está ficando cada vez mais lindo. Os amigos estrangeiros de passagem ficam encantados com as suas graças naturais e o seu modo de ser, independente de qualquer padrão atualmente conhecido. É ele de uma espontaneidade que a gente não sabe se louvar ou censurar. Discipliná-la é fazê-lo perder em encanto. Dar-lhe corda é submeter-se aos mais graves imprevistos. A sua religiosidade, por exemplo... Sabia, prezado Deus, que o meu Rio vem se afastando gradativamente do sagrado culto, indo cada vez menos à missa e cada vez mais a terreiros de macumba, onde se entrega à prática da magia negra, substituindo o seu professor por babalaôs e não sei mais quantos, e os cantos litúrgicos por pontos de macumba e cantos de candomblé, que, diga-se de passagem, são bem mais bonitos que os primeiros. Não sei se Você, com todas as suas ocupações, teve tempo de dar uma olhada para a orla marítima do estado da Guanabara, no último dia do ano. Era de ver o número de devotos de Iemanjá a penetrar nas águas como doidos, jogando flores e acendendo velas que, pela quantidade, davam a impressão de um imenso colar luminoso ao longo das praias, a ponto de criar um lindo efeito para os passageiros das grandes linhas internacionais aéreas que chegavam. Ora, é indubitável que isso vem criando um interesse turístico crescente pelo meu jovem Rio, importando em considerável entrada de divisas: o que faz com que as autoridades, como se diz, fechem os olhos ao assunto. 

Trata-se, ao mesmo tempo, de um adolescente imprevisível. Às vezes toma-se de súbitos fervores altruísticos e não pára de subir ladeiras para misturar-se a mutirões de trabalho com os favelados, passando dias a urbanizar e higienizar favelas por aí tudo. Queria só que Você visse o estado a que chega, imundo de lama e detritos: uma coisa de se ter que tapar as narinas. E de repente, como outro dia, ao regressar de uma dessas jornadas, violou e matou uma mulher, jogando-lhe depois o corpo a um córrego. E aí parte para terríveis períodos de cólera e sangue, espancando, assaltando e matando gente a esmo, especialmente na Zona Norte onde há menos vigilância. Depois recolhe-se como um santinho e faz planos de abrir escolas, construir casas populares (é muito dado à arquitetura, o meu jovem Rio!) e rasgar túneis para facilitar o trânsito da cidade: mas sem criar condições de trabalho para os operários (geralmente os paus-de-arara que, como agora se diz, dão sopa por aí) que morrem às dezenas. 

É realmente um caso muito especial... O menino faz tudo de um modo atabalhoado, alternando períodos construtivos com outros de destruição, a dar prova de uma personalidade fortemente esquizofrênica. Na semana passada, por exemplo, deu-se um caso que eu, aqui entre nós, acho engrassadíssimo; e embora tivesse ameaçado o menino com umas palmadas, se ele reincidir, tive que esconder-me após o ralho para poder rir à vontade. Imagine, caro Deus, que um guarda ao passar perto de um cano de esgoto abandonado, ali pela zona do Aterro, ouviu sair de dentro dele uma voz que dizia insistentemente estas palavras: "Rendes ap! Rendes ap!" Chegou-se e deparou com o meu jovem Rio a ensinar a um bando de marginais como assaltar turistas americanos, agora nas pportunidades do IV Centenário. "Rendes ap" nada mais é que a pronúncia de hands up (mãos ao alto), com que os gangsters do nosso poderoso irmão do norte limpam suas vítimas (e também, é claro, os do Império Britânico). E sabe a explicação que o menino deu ao Distrito? Que com a crise econômica, não está mais dando pé assaltar o elemento nacional. O negócio é mesmo achacar os turistas portadores de dólares. Agora me diga, caro Deus: Você já ouviu falar numa coisa destas? 

Deixo o caso em suas mãos. Eu, francamente, entreguei a rapadura. Mande-me, por favor, e urgente, uma palavra, nem que seja através do Alziro Zarur. 

E veja se este ano, em homenagem ao quarto centenário do menino, Você... fatura um pouco menos do que o ano passado, com relação, aos amigos da gente. Poxa!... a morte de Antônio Maria, eu sinceramente achei sujeira. 

E, é lógico, o que você puder fazer nesse sentido pelo poeta aqui, será devidamente apreciado... 

De antemão grato, aqui fico o 

Vinicius