volverPara uma menina com uma flor

O 6 de Junho

Le jour de gloire est arrivé. 

A Marselhesa 



Na madrugada do dia 6 de junho, a pacífica travessa Santa Amélia, sita em Copacabana, foi despertada por gritos femininos próximos da alucinação. Assustados, acorreram os moradores para se deparar com o espetáculo de uma mulher, uma francesa, que debruçada de sua janela, clamava para o céu noturno, como o clarim da liberdade. 


      - Brésiliens! Reveillez-vous, brésiliens! L'Europe a été envahie! Vive la France! Reveillez-vous, brésiliens! 


      Foi assim que uma jovem amiga minha soube da invasão da Europa. Por intermédio dela, provavelmente, dezenas de moças tiveram conhecirnento da notícia, que por sua vez telefonaram para centenas de amiguinhas, as quais avisaram a milhares de outras. No espaço de um minuto esse grito criou a maior barafunda em que já se terão visto as linhas telefônicas do Rio e dos estados da República:

      - Alô? 

      - Desculpe, é engano. 

      - A senhora não se enxerga de estar fazendo gracinha a essa hora? 

      - Não faz mal. A Europa foi invadida! 

      - Por que é que a senhora não vai contar isso a sua mãe? 

      - Mas é sério! Pode ligar o rádio! 

      - Jura? 

      - Juro! 

      - Santa Maria! 

      E são mais cem pessoas que sabem da grande notícia e se comunicam com mais mil. No espaço cristalino, serenizado por uma lua quase cheia, ondas hertzianas esbarram, trançam-se, dão-se nós poderosos, criando estáticas insolúveis. 

      A Europa foi invadida! 

      Numa casa em Santa Teresa, um velho francês refugiado, cardíaco, morre de alegria. Casais brigados trocam de bem, parturientes encruadas dão à luz como por encanto. Um poeta com um poema atravessado encontra subitamente a solução. A Europa foi invadida! No alto das favelas, os negros batucam sem saber de nada. Notam apenas que, na cidade embaixo, muitas luzes se acenderam em muitas casas. Não sabem que o grande golpe foi dado para a extirpação completa do cancro racista no mundo. Milhares de arcanjos desceram em milhares de pára-quedas em meio a um mar de fogo nas praias e nos campos da França. Legiões de arcanjos impiedosos, traumatizados pela rapidez da queda e pela gana de possuir a terra, caindo sem ver onde, sobre o ventre amoroso da França. 

      O velho Tempo, relativo, ainda tentou, com as suas ásperas mãos nodosas, forçar o cadeado do 5 para transformá-lo num 6 universal e se fechar em algema, na hora 0 do ataque - a hora comum para todos os povos subjugados do mundo - sobre os punhos do nazismo. Em vão. Desgarrada de seu próprio segredo a notícia corre, chega ao Brasil três horas antes de acontecer na realidade. Antes das barcaças de desembarque tocarem as praias da Normadia, já o Brasil sabia que as primeiras posições tinham sido firmadas em solo francês. Telefonadas, champanha espocando, beijos, lágrimas, confraternização. Na redação entra um preto, braço em riste, com um ramo de flores na mão: imagem eterna para um Guignard. A emoção abrevia a vida de metade da população de, sem exagero, 5 anos menos. Formam-se dilatações da aorta, por outro lado acontecem mílagres. Um hipotenso, com a máxíma a 6, volta ao normal. 

      Muitos dormiam sem saber de nada - muitos cansados do trabalho braçal do dia, do massacre das filas, da miséria dos bondes e trens superlotados; muitos exaustos de dar pulo para conseguir o amanhã da família, muitos que a vida vem gastando, que a carestia vem submetendo, que as humilhações vêm afligindo, que o nervoso, a anemia, a úlcera do estômago, a velhice precoce vêm roendo sem remissão. Esses dormiam, sem rádio ou telefone para saber a notícia. Mas é para eles, mais que para os outros, que meu coração se volta neste momento. A hora da Libertação, se aproxima. É para eles que aquela mulher da sacada da travessa Santa Amélia grita o seu grito de amor e de anunciação: 

      - Brasileiros! Despertai, brasileiros!