voltarPara uma menina com uma flor

Contra capa para Paul Winter

Quando, em 1956, eu pedi a Antônio Carlos Jobim que fizesse os sambas de minha peça Orfeu da Conceição, de onde foi extraído o filme Orfeu negro, não tinha idéia de estar dando ao jovem compositor carioca - um verdadeiro nativo de Ipanema - o sinal de partida para o nosso movimento renovador da bossa nova, que hoje ganhou projeção internacional. Paralelamente, outros jovens compositores como Carlos Lyra, Roberto Menescal e os irmãos Mário e Oscar Castro Neves compunham individualmente no mesmo sentido, numa espécie de trabalho telepático que se deveria unir numa onda comum depois do aparecimento das primeiras canções de jobim no nosso LP Canção do amor demais, cantado por Elisete Cardoso, e onde um cantor e guitarrista ainda desconhecido a não ser pelos seus mais íntimos, João Gilberto, acompanhava Elisete numa nova batida ao violão que deveria tornar-se o marco rítmico do moderno samba brasileiro. 

Daí por diante a história é conhecida. O samba que fiz com Jobim, "A felicidade", extraordinariamente divulgado pelo sucesso do filme Orfeu negro, lançou a primeira ponte internacional para a nova música. Paralelamente, no Rio e posteriormente em São Paulo, os estudantes sob a orientação de Ronaldo Bôscoli começaram a organizar shows de bossa nova, cuja aceitação foi sensacional. Em 1959 aparecia o primeiro álbum de João Gilberto, cujo título era o mesmo no nosso samba: Chega de saudade: o primeiro inteiramente dentro do espírito da bossa-nova. Daí por diante, os novos LPs de João Gilberto, lançando os sambas de Jobim, Carlos Lyra, Menescal e Oscar Castro Neves - além de reformular, dentro do novo estilo, velhos sambas de Ari Barroso, Dorival Caymmi e outros compositores - fizeram o resto. Dentro do Brasil o movimento estabelecera bases, senão ainda populares, pelo menos firmes no seio das elites e da burguesia média. 

A partir de 1961 eu comecei a compor com o compositor e extraordinário violonista Baden Powell, num sentido mais nacionalista, por assim dizer: búscando a temática dos ritos negros do candomblé da Bahia e introduzindo um elemento que faltava ao moderno samba brasileiro: a contribuição africana, devidamente sincretizada em seu novo hábitat. E em fins do mesmo ano retomei o trabalho com Carlos Lyra, criando para toda uma fita de gravação que o compositor me havia apresentado, para versificar, a história e estrutura de uma comédia musicada: a primeira comédia musicada genuinamente brasileira, salvo no nome, que é o de uma antiga canção de Noel Coward e, creio, de um antigo filme americano com Shirley Temple: Pobre menina rica (Poor Little Rich Girl). Mas como é o único nome possível para o musical, nós o temos mantido até que alguém nos ameace de processo. Porque, como disse Romeu para Julieta: "What's in a name?..." 

Perdoe o leitor americano eu ter de personalizar assim. É que muita fantasia tem sido escrita sobre a bossa nova, no Brasil como nos Estados Unidos, e já é mais que tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares. Ninguém quer a glória de tê-la inventado. A bossa nova vem de uma série de conjunturas históricas, econômicas e artísticas no Brasil, fruto do grande surto desenvolvimentista que o país teve sob a presidência de Juscelino Kubitschek: o homem que, com dois arquitetos, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, construiu em quatro anos a mais moderna cidade do mundo: Brasília. Ela é uma filha moderna do samba tradicional, que teve o seu namoro com o jazz, sobretudo o chamado "West Coast", mas que, tal como a praticam seus melhores homens: Jobim, João Gilberto, Lyra, Menescal, Donato, Castro Neves e Baden Powell, não sofreu nenhuma descaracterização, nem perda de nacionalidade. O que se convencionou chamar de "samba-jazz" nada tem a ver com a bossa nova; nem, para ir mais longe, com samba ou com jazz. É um híbrido espúrio. A verdadeira e orgânica influência do jazz no moderno samba brasileiro está na liberdade de improvisação que criou para os intrumentos e também na orientação do uso do tecido harmônico, que veste a melodia com uma graça e leveza desconhecidas no samba antigo, mais escorado no ritmo e na percussão. Tanto assim que, nos melhores bateristas da bossa nova, como Milton Banana, por exemplo, a percussão funciona freqüentemente com um sentido harmônico, se é possível dizer assim. 

Quanto ao mais, o sucesso internacional da bossa nova deve-se em primeiro lugar à sensibilidade musical do disc-jockey Felix Grant que, em rápida passagem pelo Rio, ouviu e levou para os Estados Unidos os discos de João Gilberto, os quais começou a lançar em seus programas. Depois, Paul Winter, Stan Getz, Lailo Schiffrin e Herbie Mann sentiram a mensagem do novo som brasileiro, a poesia da bossa nova. E vieram os sucessos de "Samba de uma nota só" e "Desafinado". Aí, Jobim e eu fizemos "Garota de Ipanema", que, num milagroso lance, Astrud gravou, no álbum Getz-Gilberto, com um conjunto instrumental brasileiro do qual participavam Jobim ao piano, João Gilberto no violão, Tião Neto no contrabaixo e Milton Banana na bateria. Esta é a verdadeira história da bossa nova. Hoje dá prazer ver o nome do nosso querido bairro de Ipanema transformado em moeda internacional corrente. Foi lá, no n0 107 da rua Nascimento Silva, no antigo apartamento de Antônio Carlos Jobim que, numa tarde de abril de 1956, dois compositores amigos inclinaram as cabeças um para o outro e cantaram juntos sua primeira composição tipicamente bossa-nova: "Chega de saudade". 





O que é bossa nova? Bossa nova é mais Greenwich Village do que 52nd Street; é mais uma chuva fina olhada através da janela de um modesto hotel de 46th Street que um rubro poente sobre a ilha de Manhattan, visto do Empire State Building. Bossa nova - para citar esse grande new yorker que foi o poeta Jayme Ovalle, é mais a namorada que abre a luz do quarto para dizer que está, mas não vem, que a loura bonita num casaco de mink que se leva para dançar no El Moroco. Bossa nova é mais a estrela da tarde quando brilha sozinha no crepúsculo, entre dois arranha-céus, que todo um céu constelado entrevisto de um alto terraço em Hyde Park. Bossa nova é mais uma moça triste atravessando a Broadway quando já se apagam suas luzes, que o Great Highway tumultuado em que todas as raças se cruzam e todas as impiedades são permitidas. Bossa nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação comercial de Copacabana. Bossa nova é mais um olhar que um beijo; mais uma ternura que uma paixão; mais um recado que uma mensagem. Bossa nova é o canto puro e solitário de João Gilberto eternamente trancado em seu apartamento, buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão e uma emissão cada vez mais perfeita para os sons e palavras de sua canção. 

Bossa nova é também o sofrimento de muitos jovens, do mundo inteiro, buscando na tranqüilidade da música não a fuga e alienação aos problemas do seu tempo, mas a maneira mais harmoniosa de configurá-los. Bossa nova é a nova inteligência, o novo ritmo, a nova sensibilidade, o novo segredo da mocidade do Brasil: mocidade traída por seus mais velhos, pais e educadores, que lhe quiseram impor os próprios padrões, gastos e inaceitáveis. Bossa nova foi a resposta simples e indevassável desses jovens a seus pais e mestres: uma estrutura simples de sons super-requintados de palavras em que ninguém acreditava mais, a dizerem que o amor dói mas existe; que é melhor crer do que ser cético; que por pior que sejam as noites, há sempre uma madrugada depois delas e que a esperança é um bem gratuito: há apenas que não se acovardar para poder merecê-lo. 

Bossa nova são estes sons que estão aqui, tirados por um jovem músico americano que se cativou de nossa música e hoje é, ao lado de Felix Grant e Stan Getz, o seu maior divulgador dentro dos Estados Unidos: Paul Winter. Quando ele vem ao Rio, nós já o recebemos como a um carioca honorário. Ele toca com os nossos músicos, comunga com os nossos ideiais, namora as nossas moças, come o nosso feijão com arroz, vai ver os nossos pocket-shows, flana à toa por Capacabana e Ipanema, como nós fazemos. Seu encontro com Carlos Lyra, como ficou provado em seu último LP, The Sound of Ipanema, foi feliz para ambos. Como, aliás, o encontro da bossa nova com o jazz. Nós recebemos e depois demos. E estamos prontos a receber ainda, mais e sempre. E a dar sempre, mais e ainda. 

Por isso, obrigado, Felix Grant... 

Obrigado, Stan Getz... 

Obrigado, Paul Winter...