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Terra é sempre terra (II)

Última Hora , 4 de Julho de1951

Como obra de cinema, o principal defeito de Terra é sempre terra é a sua falta de "tempo cinematográfico". O diretor, Tom Payne, terá que capinar muito nesse sentido, se quiser ser um bom diretor de filmes. Ele simplesmente não sabe o que é tempo em cinema. Falta-lhe dinamismo cinematográfico. Sua narrativa é marginal, encontra-se quase sempre um passo atrás do verdadeiro "tempo" que a sucessão de imagens deveria ter. Daí uma certa impressão de falta de sangue nas veias do filme, e a sensação sempre presente de que as paixões e conflitos com que joga a película sofrem de anemia e carecem de simpatia humana. 

Nada é menos nítido em Terra é sempre terra, sob esse aspecto. As imagens prosseguem em sucessão, ora mais rápida - em geral a sucessão é lenta - mas assim como uma página com muitas vírgulas e poucos pontos parágrafos. A troca de que dispõe a Vera Cruz foi usada com a maior parcimônia, pois os fade in e fade out - ou seja, o processo que faz as imagens imergirem ou submergirem gradativamente para estabelecer o início ou o fim de uma - pouco contribuem no sentido de ajudar o espectador a viver a passagem do tempo. Tivesse o diretor orientado com segurança o seu editor, ou contador, como queiram, e o filme teria ganho um ritmo que o aproximaria mais da vida e das paixões que pretende mostrar. 

Em segundo lugar, falta-lhe ainda estilo. As seqüências em que influiu a mão de Cavalcanti, a do incêndio no canavial, a dos ferreiros e a do banho dos dois amantes - esta última sobretudo, ilustram bem o que quero dizer: sente-se imediatamente a diferença de ritmo e de "tempo". A própria seqüência do café que se anuncia em grande forma, não a mantém por muito tempo. Enfim, como se trata de um diretor novo, não quero em absoluto que estas críticas pareçam injustas. Evidentemente ele tem muito que aprender, e creio que com aplicação e boa vontade aprenderá. 

Tecnicamente o filme, a não ser por uns poucos detalhes, é possivelmente a melhor coisa que já se fez no Brasil, desde Limite, de Mário Peixoto. Em Limite, a técnica vive em obediência ao cinema manifestado e intimamente conjugada com este, o que torna o filme uma obra superior de cinematografia. Tal não é o caso em Terra é sempre terra. Neste a técnica resulta e se impõe acima dos outros elementos do filme. Daí resulta essa coisa meio chata de se sair do cinema dizendo: "Não é, não é um grande filme, mas é muito bom do ponto de vista técnico..." 

Do ponto de vista dos atores e da orientação que lhes foi dada, Tom Payne merece os maiores elogios. Ele soube dirigir seus atores com mão de mestre. O trabalho de Marisa Prado é excelente, muito bom, é pena ser tão curto. O desempenho de Eliane Lage não dá realmente para pesar as possibilidades da jovem estrela brasileira - e eu desde que não vi Caiçaras, reservo-me o direito de julgar dos verdadeiros méritos de sua linda personalidade em alguma futura produção da qual ela participe integralmente. Quanto aos homens, achei-os ambos bons.

Abílio Pereira de Almeida, de cuja peça foi tirado o filme, parece com Louis Wolheim (ele que me perdoe ... ) - um Wolheim "dos ricos", mais bonito e mal-disfarçando a sua pinta de paulista "bem". Mário Sérgio, para um jovem estreante, muito bom; seu trabalho, posto que tímido, revela uma boa natureza de ator; ele precisa apenas ter mais coragem de "agir", quando necessário, e perder o que lhe resta de timidez, diante da câmera. Os outros coadjuvantes, em geral consideráveis. Ruth de Souza, a jovem atriz negra, é, sob muitos pontos de vista, a única atriz consciente de ser atriz que há no filme. Notei com satisfação a presença fortuita de meus amigos Albino Machado e Plínio Mendonça, em pontos recomendáveis. 

A pior coisa de Terra é sempre terra é o conteúdo. Conteúdo reacionista, apesar de urnas poucas tiradas avançadas que o diálogo em geral bom de Guilherme de Almeida pingou aqui e ali. Reacionário nisso que preconiza o direito à terra pelos patrões, sem se lembrar de que todos nasceram iguais sob o sol e que só o trabalho dá direito à terra. O filho natural com que a mulher do capataz, interpretada por Marisa Prado, aparecia no ventre ao terminar o filme - filho do patrão, a quem ela, amou e que abusou de sua condição de mulher de empregado - é quase o símbolo de uma reivindicação da alta burguesia, crivada de bastardos, com relação ao imenso latifúndio que ocupa por um direito de sucessão realmente com pouco trabalho, com pouca humanidade e com um grande desfastio elegante, que cheira a cadáver.