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Pier Angeli

Última Hora , 12 de Maio de1951

Meu amigo Sérgio Figueiredo disse-me outro dia num bar - onde eu me achava possuído de um certo trauma lírico - que eu "estava muito Pier Angeli". Apesar de ainda não ter visto Teresa, havia na expressão uma tal carga de revelação espontânea que imediatamente a luz fez-se em mim, e comecei a me sentir deveras Pier Angeli. Acho até que encabulei um pouco. 

Por quê? Quem é Pier Angeli? O que há nesse estranho e sereno nome de menina que transmite assim uma verdade em si; que, como a poesia e o cinema, revela sem exprimir? Qual o segredo da sua intrépida doçura, do seu misterioso poder de esclarecimento, da sua esquiva e triste realidade? Pier Angeli... Pier Angeli... Pier Angeli... Eu o poderia repetir indefinidamente, porque a sua repetição cria ecos lúcidos nas câmaras brancas e rarefeitas da poesia, traz a memória dos "anjos que se recordam" do verso de Rilke, arrasta subitamente para a solidão dos cais noturnos - cais noturnos com uma figura ausente de mulher longe, entre brumas, e uma lua alta, muito alta, parecendo "de pluma", como na expressão poética de Ungaretti. 

E por que esse sentimento de batalha, de heroísmo antigo, nesse nome bem-amado de Pier Angeli - nesse nome coberto de armadura diamantina, em riste a espada fulgurante, à frente de seus impassíveis exércitos? Quem é Pier Angeli - digam-me quem é Pier Angeli! -, a menina que não vou conhecer, para que nunca um desaponto possa matar em mim a magia do seu tão categórico, e, no entanto, improvável, nome de mulher. 

Não, eu não irei ver Pier Angeli - e eis que ao afirmá-lo já me vou pierangelificando de novo. E não apenas eu, também a tarde. Ao olhar agora pela janela verifiquei que a tarde está de um grande pierangelismo, e que o seu âmbar dulcificou maravilhosamente a fisionomia antes tensa dos homens que comigo trabalham. Praticarei, em vez, pierangelices. Telefonarei para Sérgio Figueiredo, para que venha comigo a um bar onde possamos falar livremente de Pier Angeli. Falar nela até que nada no mundo exista senão esse nome, e que ele nos anestesie de sonho - e se confunda com o nome das amadas, despojadas agora da matéria que as torna dolorosas; livre eu dos claustros labirínticos onde vagueia o amor na ausência, só e desatinado, com ciúme e com saudade, no desejo impossível de pierangelizar e ser pierangelizado.