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Orson Welles: traços da sua personalidade

A Manhã , 10 de Fevereiro de1942

Minha opinião de reportagens coletivas - em que pese a minha consciência de repórter - era a de uma grande superficialidade. Achava muito difícil as pessoas serem absolutamente como são diante de compromissos preexistentes. Na verdade, o homem mais natural do mundo deixa de ser ele mesmo na sociedade do seu melhor amigo. 

Toda relação cria uma necessidade de agrado, quando não de conquista. Na sociedade dos homens de jornal, então, essa necessidade de conquista é muito mais forte. Os impulsos se escondem sob máscaras afáveis e as coisas em geral aparecem num plano fútil, automático, às vezes mesmo desleal. Ao repórter interessa a sua reportagem; ao entrevistado, a sua carta de simpatia. Não há nenhum laço humano, nada que justifique essa coisa, em si absurda, de se confessar alguém em beneficio de duas vaidades - a própria ao indivíduo que aceita o fato consumado da sua glória, e a alheia, a do repórter, que só considera essa glória de um ângulo unilateral: o da boa reportagem a escrever. 

Orson Welles ontem, no Copacabana Palace, deu um golpe de morte nesse meu preconceito, ou pelo menos criou uma forte exceção à regra. 

Eu tinha esquecido que as pessoas pudessem ser naturais assim, fora do âmbito da sua vida privada. É mesmo assombroso que alguém possa nascer tão singelamente extrovertido, tão substancialmente inclinado a se mostrar em toda a sua integridade. Isso confere ao homem, imediatamente, uma dignidade que vincula outramente a relação prestes a se estabelecer. O repórter começa a fazer suas perguntas dentro de outro espírito, com outra seriedade, quase esquecido dos imperativos da sua profissão, que lhe impõem o dever de não se fazer sentir, mas sim ao seu jornal. 

Grande homem, sem a menor dúvida - isso eu já o sabia como fã de Cidadão Kane. Mas pensava que pudesse haver um indivíduo em Welles que contivesse dentro de um invólucro cabotino de puro efeito externo o artista excelente que ele provou ser no seu primeiro filme. 

Mas qual nada. Welles é um meninão, cheio de sonhos, e creio mesmo que até certo ponto inconsciente da própria importância no mundo em que vivemos. Chegou a afirmar que nada havia de original em Cidadão Kane, o que me parece um excesso de modéstia ou de ingenuidade, pois o que há de melhor em Cidadão Kane é justamente o sopro criador que atravessa todo o filme, mais importante que suas qualidades e seus defeitos essenciais. Sobretudo encantou-me a sua esperteza, a malícia que a espontaneidade lhe assegura, o dote de uma autocrítica bem-humorada, que lhe garante uma grande imunidade. Ele fará não importa o que, dirá o que lhe perguntarem sem estudo anterior. Deve haver nele uma grande experiência íntima e um grande lastro inconsciente para permitir-lhe tanta tranqüilidade humana dentro de tanta paixão. Porque é um apaixonado - isso vê-se nos seus olhos, nas suas idéias, na multiplicidade dos problemas que o movem, na sensibilidade com que os aninha e os liberta. 

Só tenho vontade de pegá-lo e levá-lo a ir comer um tutu com lingüiça na casa da gente, apresentá-lo à família, ficar amigo dele. Esquece-se mesmo a grandeza da sua missão artística por isso que nele é mais humano - a sua natureza viva e moça fundamente votada à pureza. 

Suas idéias sobre cinema estão todas na linha dos grandes mestres. As suas considerações de ontem, ditas em tom ligeiro, procurando atender ao interesse de cada um, deixavam escapar aqui e ali os traços fundamentais de uma estética simples bem plantada sobre o solo doutrinário estável. Nada de poesias, nada de divagações dentro de uma arte real como o cinema - uma funda consciência e certeza dos seus meios, todos cinematográficos. O modo como me respondeu ao problema que lhe pus, o som cinematográfico, foi o que o próprio Chaplin ou o próprio Pudovkin teriam escolhido - o som, elemento "silencioso" da imagem, servindo-a para aumentar-lhe a intensidade emocional e nunca para dar-lhe expressão. O problema da voz - quando lhe perguntei se achava possível levar Shakespeare ao cinema -, definiu-o tão lapidarmente que confesso me emocionei. Para ele a figura humana não perde o seu sentido transportada do palco para a imagem, conserva-se em toda a sua riqueza de movimentos e de linhas. Mas não a voz. A voz pertence ao teatro como elemento "vivo" da ação. A transposição para a imagem descarna-o e modifica-lhe o valor essencial "carne e sangue". E recitou uma linha de Shakespeare, com a sua voz magnífica, num gesto largo que me trouxe intensamente a figura de Kane. O problema do star system já ventilado por Chaplin e por Pudovkin, repetiu-o com a mesma grande compreensão da irrealidade do atual método de Hollywood. Citou o caso de Charles Laughton, grande ator estragado pelo fato de ser grande ator, em desequilíbrio constante com os argumentos que lhe dão. E anunciou - coisa que muito alegrou - que o seu novo filme, The Magnificent Ambersons, é uma obra mais diretorial, mais friamente cinematográfica que Kane. É que eu preciso ver Welles dirigir cinema, mais que dirigir Orson Welles, para uma aceitação irrestrita. Cidadão Kane é uma obra de extravasamento, às vezes fugindo às exigências artísticas do cinema.

Esse teste de direção para o simples, eu sempre o achei do maior interesse para o criador que evidentemente Welles é. Quanto ao mais, foram novidades que todos já devem saber. Seu novo filme, onde entra o carnaval carioca - quero ver o que vai sair dali para depois crer, pois trata-se do malfadado tecnicolor - e em que ele deposita as maiores esperanças; seu entusiasmo pelo Brasil, onde ele quase nasceu; suas idéias sobre a interpretação negra, que ele julga tão boa como a branca, quiçá superior, pois se revela através de uma natureza mais pura, menos manchada, por isso que ele chama the XIXth century's romanticism; seus broadcasts sobre o Brasil, para os Estados Unidos. E isso tudo faz o homem.