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Orson Welles no Brasil

A Manhã , 9 de Dezembro de1941

Orson Welles vem ao Brasil. Convenhamos que o fato se reveste da maior importância para os apaixonados do cinema. Welles é sangue novo, sangue produzido espontaneamente da revolta de um organismo que não se quis deixar morrer e voltou a se avitaminar em bons frutos, de sumo ácido. 

É preciso confiar em Welles. Tudo o que há de perigoso nesse homem, na sua arte, na sua violência, na sua crítica, no seu desmando,é necessário à cultura de um novo cinema que nasce. O velho cinema, desvirtuado na sua técnica pela infiltração do mercantilismo, que a colocou a serviço de um patrimônio estúpido de sentimentos burgueses, azedou, sem embargo da boa massa do fundo que hoje já não alimenta senão a saudade de alguns fãs mais tolerantes. 

Mas isso não satisfaz ninguém. O que é preciso é não se ter saudade, mesmo saudosos, para que se empreste ao presente a energia da nossa confiança. Welles aí está, impuro, manchado de astúcia, de fraude muitas vezes, um aventureiro legítimo. Mas há nesse aventureiro uma idéia tão grande, uma humanidade tão vasta, uma violência tão autêntica, que ao mundo não ferem as suas cabotinadas, as suas perfídias, as suas amoralidades. Welles vem para criar, assim o grita o seu Cidadão Kane, assim o afirma o interesse com que Chaplin o buscou, vem para chocar o preconceito da burguesia com o seu destabocamento, para escandalizar e entusiasmar, e para errar ele também na sua luta por um mundo genuíno. É o que revelam sua personagem irritantemente antiburguesa e a sua técnica vária, múltipla, igual à vida, como ela cheia de estados opostos, de harmonias e desarmonias, de contrastes chocantes, mas onde nascem, crescem e morrem, em sinceridade, sentimentos verdadeiros. 

Ninguém anda mais em busca de arte, nem de crítica. De arte está o mundo cheio, dessa arte artística de contornos exatos e estética determinada, que se faz sem sofrimento e com uma simplicidade que se erigiu em criação, quando a simplicidade é o que devia ser, mas naturalmente, sem esforço. No entanto, o que se vê por aí é uma simplicidade de propósito, arrumada à custa de vaidade e de talento. 

Isso nos traz o grande Orson Welles. Traz-nos uma natureza persuasiva, que não se vexa da própria sordidez e sabe se com prazer no espetáculo da grandeza e da miséria da vida. Esperemos que sua vinda ao Brasil nos deixe o que há de realmente permanente na sua força.