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Orson Welles em filmagem

A Manhã , 30 de Abril de1942

Ontem fui à Cinédia, a convite de Orson Welles, para vê-lo um pouco em ação. Anteontem o havia encontrado em Copacabana, e, como sempre acontece quando o encontro, toda a minha admiração e simpatia por ele se renovaram. Discutimos, como também sempre acontece, numa roda onde se achavam entre outros amigos o pintor Misha e o escritor Aníbal Machado (escritor é a única palavra que cabe para Aníbal Machado, que se sente à vontade em qualquer gênero de prosa), e dessa discussão nasceu o convite. Apressei-me a ir, naturalmente. A verdade é que, em toda minha longa vida de fã e estudioso de cinema, faltou-me essa experiência. Não a considero de máxima importância, uma vez que a filmagem é processo muito mecânico demais, com um aparato muito fotográfico demais para interessar especialmente um leigo como eu. O melhor do interesse da filmagem reside no diretor, no seu modo de ver: e convenhamos que por mais que eu conheça Orson Welles não me é possível decifrar o que lhe vai na cabeçorra. Mas mesmo assim interessava. Eu queria vê-lo mover-se; vê-lo "ver", vê-lo tratar com os amadores que o servem, nesse momento. 

Não me arrependi. Achei Orson Welles esplêndido. E que energia, que vitalidade, que ubiqüidade há nesse grande brasileiro! Brasileiro, sim; Orson Welles começa a conhecer o Brasil, ou pelo menos um lado importante da alma do Brasil, melhor que muito sociólogo, que muito romancista, que muito crítico, que muito poeta brasileiro que anda por aí. Sua visão é às vezes crua, mas nunca peca por injustiça. E Orson Welles soube compreender como ninguém a importância do nosso caráter, dos nossos erros, dos nossos comodismos, das nossas qualidades por assim dizer negativas. A isso ele dá importância, à natureza coletiva que se começa a formar a bem dizer do nada, num impulso brasileiro, de criação autodidata, à luz das melhores e piores influências, e em verdade autônoma. 

Orson Welles está de tal modo de posse do nosso carnaval que Jaime Azevedo Rodrigues, que estava comigo, aconselhou-o a fazer uma palestra sobre todos os carioquismos, todas as "pintas", todos os ritmos, todos os instrumentos, e sobre tudo aquilo que esse garotão americano sabe. Olhando o estúdio em volta, disse-nos ele, uma hora, lá: "Amor aqui é mato." Rimo-nos, e eu perguntei a ele se já sabia que carência de alguma coisa aqui era "gasolina". Ele me olhou com desprezo. Para não me encabular diante dos presentes declarou-me que a piada já era velha... 

Disse-me, inclusive, que a cuíca tinha sido introduzida em nosso conjunto instrumental popular através do cinema americano, coisa que me deixou de boca aberta, e que preciso perguntar amanhã a Mário de Andrade, que conhece essas coisas melhor que Orson Welles. 

É um ótimo companheiro. Visse o leitor o modo como trata os seus atores, sempre brincando com eles, sempre os ajudando, nunca os pondo nervosos ou encabulados, e teria uma boa noção da dificuldade e da trabalheira que um filme dá a um diretor consciente. Orson Welles tomava ontem uma cena mínima, de um baile de carnaval. Fê-la, no entanto, repetir várias vezes, e eu pude observá-lo bem, a meu lado, os olhos meio esbugalhados na atenção, até que gritou o seu Cut! com um ar satisfeito. A menina que representava tinha acertado, enfim. Tratava-se de dar dois passos para a frente e ficar com um arzinho ligeiramente enciumado, ligeiramente consternado. Só isso. E quanta canseira... 

Conversou-se muito. Conversa que não daria para uma crônica, mas para muitas, algumas das quais nem sei se lógicas. Orson Welles está consciente da verdade do seu esforço, e disse-me que se o filme não sair bom a culpa não terá sido dele.

Falar verdade, é dificil saber exatamente o que vai ser esse filme seu. Mas de qualquer modo será um documentário da maior importância sobre nossa verdadeira vida e nossos verdadeiros costumes, que eu acho não devem envergonhar ninguém.

Não somos uma raça, e não nos devemos pejar disso. O nosso negro é um valor excelente, e de grande expressão. Não há razão para escondê-lo, criando um preconceito que não cabe na nossa natureza de povo americano. Devemos nos mostrar tal como somos, tal como fomos feitos. Porque, se alguma coisa de boa deve sair do Brasil, virá dessa consciência de nossa impureza e do nosso provincianismo. Há um destino a cumprir em cada povo. O Brasil se apronta para cumprir o seu. Mas que o faça sem couraças adamantinas, que não lhe vão bem no corpo mestiçado.