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O netinho de papai

Última Hora , 25 de Setembro de1951

Uma das coisas que nunca consegui entender é esse fato que Hollywood, sempre às voltas com concursos, certames e reuniões, para a escolha do "melhor", da "miss", do "ás", do "crack" (creio que no fundo um pouco para se convencer de que é mesmo a melhor e mais bem-dotada colônia do mundo), ainda não se lembrou de instituir um Oscar como prêmio ao diretor que conseguisse menor espaço de tempo, num hino de louvor à mediocridade, ao lugar-comum, à chatice mais chata que é possível conceber a imaginação humana. Seria certamente concorridíssimo e muito disputado o prêmio, pois Hollywood não se contenta em ser cretina. Faz questão de apregoá-lo ao resto do mundo e convencer-se de que o negócio é mesmo nada de gente "diferente" (Sim, porque se você não achar graça nas burrices dos filmes você é considerado "diferente", o que é uma polida maneira de lhe chamar de doido, de elemento indesejável e outros elogios no gênero). 

A única coisa que se tornaria necessária seria dar o verdadeiro nome às coisas, por exemplo: em vez de chamarmos o prêmio de "Oscar ao Bom Senso". Filme de gente "bem", amando-se "bem" e vivendo "bem", pelo filme afora. A dificuldade estaria só em título, pois nessa especialidade há verdadeiros mestres em Hollywood, que se aperfeiçoam cada vez mais no intuito de apresentar a chatice humana no seu estado mais puro e genuíno. Indiscutivelmente, um dos sérios concorrentes ao prêmio seria esse filme de Spencer Tracy, Joan Bennet e Elizabeth Taylor, que consegue atingir um alto grau de estupidez sem muito esforço, dispensando com dignidade o uso das pernas, pin-up girls, sheiks, luxos asiáticos, etc. que se constituem elementos preciosíssimos na confecção de abacaxis, valioso auxiliar que é o tecnicolor. 
Pois O netinho de papai é uma superação de tudo isso. Consegue ser chato sozinho, gratuitamente, espontaneamente. 

As personagens passeiam pelo filme dizendo frases sempre sensatas e fazendo coisas que todo mundo faz (todo o mundo em Hollywood, é claro). Spencer Tracy, com a sua cara de sola do pé, está atingindo o auge do canastronismo. Elizabeth Taylor, linda e insípida, sempre vestida de boneca, sempre de organdi estufado até mesmo durante as seqüências em que aparece grávida - e sempre titubeando antes de falar para mostrar que é boa menina - tem invariavelmente seus diálogos interrompidos por choros convulsos, corridinhas de jeune fille e inocências correlatas: apesar de mostrar bastante esses belos ornamentos naturais que as mulheres carregam por garbosamento na região torácica. 

Eu, palavra de honra, já vi muito bicho e muita gente ter filho. Já vi uma gata ter filhos e a bichinha agiu com a maior dignidade, desincumbiu-se sozinha de sua árdua missão, cortou o cordão umbilical de seus filhotes, lavou-os bem lavados com a própria língua e depois dormiu com grande tranqüilidade e consciência do dever cumprido. Já vi também uma mulher pobre ter um filho, em meio à maior miséria e já vi até gente chamada "bem nascida" sofrer partos como um bravo digno de toda a consideração. Mas com Elizabeth Taylor o negócio parece ser diferente. Em primeiro [lugar, em que] lugar do seu corpo se localiza a criança, porque esse negócio de barriga mesmo que é bom, neca. Depois a menininha age exatamente como se estivesse carregando no ventre o Tosão de Ouro, ou a declaração da Independência, em vez de uma criança em estado fetal. O negócio não convence de modo algum, fica de uma tal falsidade, de um tão grande cretinismo que eu - e que me caia a casa se eu estou mentindo - saí do cinema com gosto amargo na boca; um típico derrame de bílis, fruto de engolir a minha raiva impotente de ter que ver, por dever do oficio, tanta porcaria como esta.