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O neo-realismo italiano

1 de Janeiro de1940

A questão do realismo tem dado margem a que se diga mais sensaborias temperamentais que qualquer outro assunto considerado atual dentro dos quadros da arte contemporânea. De um lado, freqüentemente postados em atitude sectária, ficam seus defensores, dispostos a aceitar não importa que banalidade feita em seu nome; do outro, em atitude superior de desprezo e reserva, ficam seus inimigos, a mastigar o próprio desdém em fórmulas absenteístas. 

O curioso é que, no meio de tudo isso, fica a arte: e no furor das discussões partidárias, muito pouca gente se lembra de que ela está ali; e sua realidade transcende qualquer sistema ou escola, pois que provém de um ser que se chama o artista, o qual não se encaixa em nenhuma definição, ou em todas; e que se realiza como tal porque dentro dele existe um impulso orgânico determinado que o leva a viver e interpretar a realidade de um modo absolutamente sui generis. 

Esse ser - o artista -, ele sim não pode fugir à única injunção da sua investidura: ser real. Tem ele de ser real, do contrário não pode nunca ser artesão da sua arte. E é por ser real que é humano no grande sentido da palavra, e por ser humano é que suas antenas voltam-se infalivelmente para os maiores ternas do seu tempo, dos quais se faz, à medida, um intérprete cada vez mais consciente e humilde. 

Uma das coisas que notei, quando de minha estada no ano passado na Itália, foi que alguns dos maiores adversários do rótulo "neorealismo" , como título do movimento cinematográfico que ali se processou no após-guerra, são seus melhores homens. Rossellini, por exemplo, deu francamente de ombros à expressão. Parecem aceitá-la como um fato consumado; como um nome à falta de outro melhor, mas ele não os preocupa particularmente. Acham, no geral, que fizeram o que fizeram porque as circunstâncias do após-guerra assim o exigiram, porque era o único meio que tinham de expor as feridas deixadas pelo fascismo, sacudir a consciência nacional. Era a sua responsabilidade artística fazê-lo, e para tal não lhes cabia nenhum outro instrumento de ação senão a realidade: o monstruoso resultado deixado pela servidão física, moral e intelectual de muitos anos. A guerra, além de afastar dos lares os homens mais válidos - muitas vezes irmãos a se baterem contra irmãos em solo nativo - colocara a mocidade italiana diante do agudíssimo problema de prover por sua própria subsistência. São do conhecimento geral (e julgamos inútil remexer demais em tema tão sórdido, sobretudo agora que o país se vai rapidamente recuperando com grande saúde e beleza) as terríveis condições em que foi deixada a mocidade e a juventude italiana em face dos bárbaros que a assolaram. O próprio Rossellini contou em tons dramáticos a dolorosa história de vício e virtude que é Roma, cidade aberta. A verdade é que o assunto ali estava, vivo e palpitante, para qualquer artista consciente - quanto mais para um artista italiano consciente! Hoje, quando já se pode ver o panorama de uma certa distância, é fácil criticar, como muitos fazem, a aparente frieza com que ele cravou o bisturi na carne semimorta mas desperta de sua pátria, e é fácil lamentar que esse desordenado mas extraordinário criador tenha usado de recursos soi-disant mórbidos - como o realismo brutal da cena da morte de Anna Magnani, da tortura de Marcello Pagliero ou do fuzilamento de Aldo Fabrizi. Na verdade esses se esquecem de que o filme serviu não só para despertar de muito a consciência internacional com relação à gravidade do problema do após-guerra italiano, como representa um verdadeiro marco dentro da cinematografia peninsular - um verdadeiro grito de alarme que ajudou não só a libertação íntima de alguns realizadores comprometidos com o fascismo, como fez soltar as molas de novos cineastas, já agora em busca dos caminhos da esperança. 



Por volta de 1948, o crítico Jean Desternes ouviu uma série de diretores sobre a questão do realismo, entre os quais o americano Orson Welles, o alemão Pabst e os italianos Lattuada e Castellani. De início, tanto Welles como Pabst procuraram colocar a questão em termos léxicos. "É preciso distinguir entre realismo e realidade", diz o primeiro. "Entre a realidade e o realismo diz Pabst, "é preciso fazer inicialmente a distinção que nós temos em língua alemã." 

De fato; em nossa sociedade o conceito não é exatamente fácil de definir. Numa sociedade criada em novos moldes, como é o caso da União Soviética ou da China, não há propriamente problema quando se coloca a questão do realismo socialista. Pode-se aceitar ou não, mas há que convir que se trata de um conceito sem pruridos léxicos, de uma tentativa-de valorizar a realidade de novas forças em ascensão de um modo amplamente popular. Mas do lado de cá da linha, os realizadores da arte ocidental se têm de haver com uma infinidade de paradoxos estéticos que lhes foram legados por muitos séculos de uma formação econômica e intelectual não menos paradoxal. Na verdade, se o realismo é a transcrição, ou melhor, recriação tanto quanto possível direta da realidade, como poderão eles considerá-la direta se ela é uma transcrição ou recriação - uma transcrição ou recriação que se apóia em elementos fragmentários dessa mesma realidade: os sons, as imagens, as cores, as palavras? - e sobretudo se ela parte do princípio da escolha de uma realidade específica entre muitas para se exprimir? 
0 fotógrafo Henri Cartier-Bresson, que é para mim um dos maiores artistas do nosso tempo, diz que é partindo do olho do fotógrafo, do olho humano em última instância, que começa para cada um de nós o espaço que vai se alargando até o infinito, o espaço presente que nos fere com maior ou menor intensidade e que se vai imediatamente ocultar em nossa memória e aí se modificar. A realidade é, pois, um fotograma instantâneo, que quando desaparece é impossível fazer reviver. Por isso, diz ele, de todos os meios de expressão a fotografia é o único que fixa o instante preciso. Mas mesmo aqui, através de um processo mecânico que modifica essa realidade, que a retranscreve, recria ou transfigura - pois que ela está sujeita a uma série de acidentes que lhe são estranhos. A realidade transcrita numa fotografia está sujeita, por uma questão de um centésimo de segundo, a não ser mais aquela entrevista pelo olho do fotógrafo e já estar transformada em memória na sua lembrança. A perspectiva de um espaço real pode se modificar, no momento da tomada, por um tremor da mão, um balanço do corpo, uma flexão do joelho. Do ponto de vista da cor da realidade, lida o fotógrafo seja com a convenção do preto-e-branco - que Cartier-Bresson chama "uma deformação, uma qualidade abstrata", seja com processos coloridos de desenvolvimento técnico ainda precário, que dependem da velocidade das emulsões, e obriga o fotógrafo ou a motivos estáticos, ou, para contornar essa dificuldade, ao uso de luzes artificiais intensas - isso sem falar nos azares da impressão posterior. 

Nisso tudo, onde fica o realismo? Eis porque, de um ponto de vista orgânico, vital, o problema da escola me parece supérfluo, do mesmo modo que parece supérfluo aos criadores do chamado "neo-realismo italiano". Castellani confessa considerar certas partes mais obviamente realistas de seus filmes como charges do neo-realismo. Lattuada confessa buscar a linha pura sob o pitoresco da realidade. Luchino Visconti é fundamentalmente um estilista; um artista absolutamente consciente do binômio forma-conteúdo, ou seja, a organização plástica rigorosa da concepção e da emoção a transmitir. Rossellini, exceção feita talvez de Roma, cidade aberta e Alemanha, ano zero, é um artista antes temático, despreocupado da forma em beneficio da mensagem que quer transmitir. De Sica é um lírico total, um chapliniano, para quem a realidade é apenas um ponto de partida na procura de algo melhor. Onde fica, pois, nisso tudo o realismo como escola? 

Nisso talvez que todos esses homens fizeram da vida, cada qual a seu modo, da vida como ela é (mas não como ela é na concepção de Nelson Rodrigues), o grande assunto de suas criações individuais diversas mas aparentadas; e do homem - o seu semelhante e irmão que, naquele momento especial sofria a amarga experiência do após-guerra - a grande personagem de suas histórias simples e emocionantes. 

Seu realismo foi assim a inelutável maneira que tiveram de provar sua fé na vida e no homem. Ao mostrá-lo em sua miséria, souberam também revelar instantes especiais de sua grandeza. E só com este ato de fé no homem abriram um caminho entre cadáveres para que gente nova, gente viva pudesse passar depois. 



Por volta do princípio do falado, entre 1930 e 31, o escritor Phillipe Soupault havia descrito a cinematografia italiana como "a pior do mundo". Não estaria o francês sendo injusto para com uma nova arte no país da Arte? 

A verdade é que não estava. Já naquela data o Brasil podia se orgulhar de certas produções de um Humberto Mauro, de um Ademar Gonzaga, para não falar de um Limite de Mário Peixoto. É possível também que o escritor não conhecesse, se é que já existia, o cinema turco. Mas de qualquer forma a afirmação dói, quando nos lembramos que ele fala aqui da terra de Dante, Petrarca, Bocaccio e Leopardi; da terra de Giotto; Masaccio, Mantegna, Piero della Francesca, Carpaccio, Da Vinci, Tintoretto, Ticiano; os irmãos Bellini, Giorgione; da terra de Donatello e Miguelangelo; da terra de Galileu e Fermi. 

Dói, mas é a verdade. Tive, ainda no ano passado, a oportunidade de assistir em Veneza à retrospectiva de cinema italiano, com os velhos filmes da Duse e de D'Annunzio, da Bertini e da Menichelli. Material duro, mesmo para um velho interessado como eu. D.W. Griffith pulveriza com uma seqüência de seu Nascimento de uma nação ou seu Intelorância os faustosos Cabiria, Fabiola ou Quo vadis. A triste realidade é que as superproduções italianas não devem nada, em mau gosto, às de Cecil B. de Mille. E o cinema italiano manteve por muito tempo a mania do grandioso. O Cipião, o Africano, de Carmine Gallone, consegue fazer seus fabulosos cenários naturais parecerem papelão. 

Essa foi, evidentemente, a linha que o fascismo italiano estimulou, conjuntamente com as produções de Augusto Genina, sobretudo O esquadrão branco e O ataque ao Alcazar, a Sentinela de bronze, de Romolo Marcellini; o Luciano Serra pilota, de Gofredo Allessandrini; e outras misérias mais. Uma linha falsa, epopéica, militarista, que foge completamente ao caráter mais íntimo do povo italiano: um povo extremamente sadio, criador de belezas sem par, a um tempo doce e apaixonado e, apesar de sua comprovada bravura, quando se torna preciso, com uma sagrada e natural repulsa à violência inútil, à guerra, ao heroísmo desnecessário. 



Aliás, o Festival Internacional de Veneza refletiu por certo tempo esse espírito. Iniciado muito bem em 1932, com uma simples classificação onde foram premiados, entre outros, o ator Fredric March, e os diretores René Clair e Nikolai Ekk, deu no ano seguinte o prêmio para o melhor filme estrangeiro a Man of Aran, do grande Robert Flaherty. Até aí está ótimo. Já em 1935 - com o aumento de prestígio da Mostra - era premiado o impressionante e infame O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, filme de propaganda da violência hitlerista. Em 1936 instituía-se a Copa Mussollini e seu vencedor foi justamente Augusto Genina, com o Esquadrão branco. Em 1937 Carmine Gallone levava o prêmio do melhor filme italiano com o seu Cipião o Africano, e Sentinela de bronze, de Marcellini, era premiado como o melhor filme sobre motivo colonial. Em 1938, ou seja, um ano antes da guerra, venciam no Festival o filme alemão Olympia - aliás, o único grande filme do nazismo, realizado por Leni Riefenstahl sobre as Olimpíadas de Berlim - e o italiano Luciano Serra pilota. Já por essa ocasião quase que só eram premiados filmes estrangeiros sobre assuntos mórbidos ou intimistas. Em 1939, ou seja, o ano da guerra, o Abuna Messias de Goffredo Atessandrini ganhava o prêmio do melhor filme italiano, nada sendo atribuído a filmes estrangeiros. Durante os primeiros três anos da guerra - ou seja 1940,1941 e 1942 - são premiados os italianos O ataque ao Alcazar, de Genina, Coroa de ferro, de Alessandro Blassetti, e Bengasi, também de Genina; e os alemães Der Postmeister, de Ucicky, Olm Kürger, de Hans Steinhoff, e Der grosse Kõenig, de Veit Halan. Em 1942 aparece na mostra de Veneza um jovem italiano que, com um filme extremamente bem-feito sobre a famosa história de Pushkin, O tiro de pistola, não ganha nenhum prêmio. Seu nome: Renato Castellani. 

Em todo esse período, os nomes do cinema italiano quase não variam: Gallone, Guido Brignone, Genina, Alessandrini, Romolo Marcellini, Camillo Mastrocinque, Mario Camerini, Biasetti, Mario Mattoti. Alguns desses homens, é claro, se recuperaram inteiramente da contratação fascista, e entre eles cumpre acentuar os nomes de Genina, Blasetti e Camerini. Curiosamente, o ano de 1941 marca o aparecimento de um diretor que viria posteriormente a ser um marco no neo-realismo italiano: Roberto Rossellini, com o seu La nave bianca. 
Já em 1946, a guerra ganha, a coisa muda muito de figura. A Mostra veneziana premia The Southerner, de Jean Renoir, Les Enfants du Paradis, de Marcel Carné, Os carrascos também morrem, de Fritz Lang, o Henrique V de Laurence Olivier; e até um filme soviético, de Mikhail Ciaurelli, merece reconhecimento. Daí por diante Veneza se abre a todos os países, até 1948. Em 1949 a Guerra Fria passa a refletir-se novamente no certame internacional do Adriático. 

Tudo isso vale para provar o terrível efeito do fascismo sobre os criadores italianos de cinema. Quando Rossellini rompe as amarras, com o seu notável Roma, cidade aberta, a realização dos novos realistas começa a se fazer valer na Mostra de Veneza. Em 1947 Caccia tragica, de De Sanctis, é distinguido com o Prêmio da Presidência do Conselho de Ministros; Sob o sol de Roma, de Castellani, ganha o mesmo prêmio em 1948. Em 1949 Cielo sulla palude, do novo Genina, é honrado com igual distinção. A co-produção Domani è troppo tardi, de Leonide Moguy, leva a palma em 1950, e em 1951 Pietro Germi vê vencer o seu La città se defende. Os filmes italianos são também distinguidos em festivais estrangeiros: De Sica, Lattuada e Casteliani vêem obras suas premiadas em Punta del Este, Cannes, Berlim. 

É possível que esta enumeração esteja caceteando a alguns, mas ela vale para provar que não é possível ao artista trabalhar sob qualquer opressão, a não ser que tenha carta branca para fazê-lo, o que é difícil. O grande surto do cinema italiano, que veio colocá-lo ao lado dos melhores do mundo, e arrastou toda a crítica internacional para a discussão do fenômeno que representou, no fundo nada mais foi que um tremendo movimento de libertação. Rompidas as cadeias, fez-se a vida. Aí estão seus maiores homens: Visconti, Rossellini, De Sica, Lattuada, Zampa, Germi, Castellani, De Sanctis, Antonioni - para prová-lo. Fizeram e estão fazendo o seu cinema. Hoje, eu creio, com a crescente comercialização do cinema peninsular, muitos deles terão perdido o impulso primitivo, diante da invasão das alucinantes Pampaninis, Rossi-Dragos, Del Poggios; Bosés, Ruffos, Bertis, todas portadoras de fabulosas lollobrigidas, moças que entraram de peito pelo cinerna italiano adentro deixando os visores das câmeras absolutamente estáticos sobre as suas esplêndidas mocidades. Eu que conheci algumas, confesso-vos que poucas vezes vi nada no mundo tão belo quanto a linha do horizonte feminino do cinema italiano. Mas… serão elas neo-realismo? Neotaradismo? 

O que parece evidente é que, cansados de pintar os dramas de sua pátria, a maioria dos diretores neo-realistas resolveu repousar a cabeça em berço esplêndido. Rossellini inclusive, cuja preocupação maior parece antes dar lindos filhos a Ingrid Bergman que bons filmes à Itália. Resta, no entanto, a esperança de alguns, à frente dos quais coloco Luchino Visconti, cujo filme Ozzezione ireis ver dentro de poucos minutos. Visconti é realmente um criador notável, e embora este filme não seja considerado o seu melhor, já há nele essa notável qualidade funcional, esse respeito formal ao conteúdo, essa crispação estilística sem a qual nenhum artista pode permanecer. Longe de ser um formalista - sendo, pelo contrário, o que hoje em dia se chama um artista engagé - Visconti é para mim o maior diretor italiano vivo. Os seus La terra trema e Bellissima são obras maiores de cinematografia, apesar de não parecerem dar senão uma leve amostra de suas reais capacidades. 

Resta também Castellani, um diretor vigoroso, cuja força vital se traduz em contínuos cantos de esperança e fé nos destinos da mocidade de sua pátria. De Sica pode ser sempre uma surpresa, apesar do boicote que lhe faz a indústria local, sob o pretexto de que seus filmes não se vendem. O próprio Rossellini, cansado de ver na câmera o rosto pasteurizado de sua mulher, pode muito bem, de repente, voltar aos bons tempos de Roma e de Paisà. Mas uma coisa parece certa: o neo-realismo acabou com tal. E acabou por isso que não é nem nunca foi uma escola de cinema. Foi apenas uma atmosfera.