voltarMovie

O monstro do Ártico (The Thing)

Última Hora , 14 de Novembro de1951

Não leitor, eu estava enganado quando, ontem, te anunciei que a Coisa tinha chegado. A Coisa é outra. Fui ver O monstro do Ártico (The Thing - que em inglês quer dizer A Coisa), e em vez da Coisa dou com um monstro botânico, produto de uma platéia qualquer onde a evolução se processou num sentido vegetal, ao contrário do que aconteceu nesse nosso desventurado mundo. Essa supercenoura, como o chama o jornalista do filme, desce em pleno Ártico dirigindo um disco voador, onde é encontrado em estado de congelamento - direitinho, o que acontece com os legumes nessas geladeiras modernas - por um grupo de aviadores e cientistas americanos numa base polar. Daí por diante a Coisa faz miséria, porque tratava-se de um hematófago, ou seja, um comedor de sangue, e o racionamento devia andar brabo lá pelas alturas. Enfim, como comedores ou bebedores de sangue são coisas também comuns aqui na Terra, o fato não me impressionou particularmente. No reino animal o fenômeno é dos mais corriqueiros, sendo praticado fartamente por comedores de churrasco sangrento, tarados sexuais, vampiros de Dusseldorf e alhures, aborígines africanos, nazistas e muitos políticos e capitalistas, desses que se dedicam laboriosamente a chupar o sangue do povo. Mesmo entre as aves não é incomum a desagradável prática. 

Lembro-me de, certa vez, ter ficado parado no matadouro de Santa Cruz a ver os urubus disputarem o lugar debaixo de uma calha ou corredeira de sangue do gado abatido. Ficavam os bichos de bico aberto para o ar, positivamente se empilecando da rubra linfa da vida bovina. 
Mas no reino vegetal o negócio é bem mais estranho. Há, é claro, as famosas plantas carnívoras, que aparecem às vezes nas fitas de Tarzan - mas eu nunca tinha ouvido falar de uma Coisa toda feita de fibra vegetal, com cabeça, tronco e membros como ensina a zoologia, capaz de largar um braço pelo caminho e esse braço crescer de novo feito rabo de lagartixa, e além do mais comer sangue. Puxa vida. É um bocado de atributo para um pepino humano. E os cientistas presentes a consideram superior ao homo sapienti, pois é ela detentora dos segredos da energia cósmica e da longevidade, podendo a um só tempo dirigir discos voadores pelos espaços interplanetários e derrubar a murros uma legião de volantes de Copacabana, dada a sua fabulosa força física. 

Não é pouca coisa não, pensando bem. O nosso prezado rabanete tranca-se numa estufa, a fim de estar não só no bem-bom (pois não se esqueçam que a história é polar) como por uma questão ecológica, um hábito social. Com certeza ficava a Coisa ali de papo com as mudas e os brotinhos, e sabe Deus, sendo tão avançada de idéias como era, as torpezas que não cometeu com as plantinhas novas. Enfim estou aqui no terreno da pura ponderação fugindo às bases científicas em que se processa o filme. O caso é que ninguém podia com a Coisa e se não fosse um grupo de aviadores americanos de Hollywood que estava ali, não sei não... Qualquer outro povo teria fracassado. Porque a Coisa não era nada sopa. Bala de revólver mesmo que é bom passava através da palinha da Coisa feito grampo em cabelo de mulher. Fogo também não matava a Coisa - chamuscava apenas. O que se sabe é que antes do filme terminar havia dois cientistas decapitados no interior da estufa e pendurados de cabeça para baixo feito boi em açougue com o sangue convenientemente chupado pela Coisa. A coisa não podendo continuar no pé em que estava, os aviadores - porque os cientistas, sendo que vários com sotaque estrangeiro, não queriam matar a Coisa não, queriam conversar antes com ela e aprender coisas... - os aviadores, dizia eu, resolvem eletrocutar a Coisa, com grande risco da própria vida, transformando-a provisoriamente num cozido (sem lingüiça ou carne de qualquer espécie) e logo num montinho de cinzas vegetais. Assim Hollywood salva mais uma vez a civilização da barbárie supercientífica e o aviador casa com a mocinha. Mas isso já é outra coisa. 

Uma coisa sinceramente me deu pena. É que não houvesse algum brasileiro presente à expedição, capaz de convencer os aviadores a pegar a Coisa viva, ou narcotizá-la, e trazê-la para o Brasil onde, com toda aquela quantidade de fibra vegetal, podia muito bem ser aproveitada pelo sr. Guilherme da Silveira na confecção de novos e lindos padrões de tecido Bangu.