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O leão boceja

Sombra , 1 de Março de1950

O jogo tem sua origem, como sói dizer, na mais remota antigüidade. Os homens primitivos da Austrália e África do Sul costumavam praticar adivinhas à maneira das que hoje correm, levando o perdedor, no final, formidável golpe de clave ou maça no alto da cabeça. Tácito, o historiador, narra que os teutões, mesmo "sem a desculpa da bebida", jogavam-se a si próprios em jogos de azar, tornando-se escravos dos que ganhavam. Os nativos sudaneses e da costa da África punham na rinha, sem dizer água-vai, cônjuge e progênie num costume ainda não totalmente desaparecido. Isso sem falar nos chineses que jogavam as mãos no pano-verde, as quais eram convenientemente cortadas à altura do pulso vencedor na hora do paga-prenda, constituindo-se em troféus e enfeites de grande saída, como as atuais cabeças de veado e panelas de cobre, ou, num plano mais elevado, os móbiles de Alexander Calder.
 
O costume veio até nossos dias, tendo tido a mais franca aceitação entre muitos próceres da passada ditadura, os quais debruçados sobre mesas de roleta, bacarat e campista, entregavam-se às mais esotéricas martingales numa excitação que os fazia freqüentemente cuspir ou atirar de revólver no número 13, enfiar o charuto por engano no buraco da orelha, e morder o braço da dama ao lado, rindo histericamente, ou a espumar e proferir impropérios como que possuídos do Maligno. 

A tal sedução escaparam os assinalados varões Clark Gable e Gregory Peck, membros proeminentes da Colônia Cinematográfica de Hollywood, como pude constatar em dois filmes recentes da MGM, Any Number Can Play e The Great Sinner. 

Any Number Can Play entretém o problema de um jogador profissional, Clark Gable, a braços com o dilema família versus pano-verde. Deu-lhe esta riqueza, conforto e um complexo de superioridade muito a gosto do sexo forte nestas plagas, embora na realidade o estribilho cante diferente. A família, por outro lado, satisfaz-lhe a vaidade de provedor, sendo além do mais um oásis no deserto, a ilha no meio do oceano, e outras metáforas que, com ânimo e paciência, o leitor não tardará em descobrir por si mesmo. 

Mas casa e cassino não se dão bem. Alexis Smith, a esposa do jogador, sofre da profissão do marido, assim como seu filho, um adolescente com francas tendências a entrar para a Escola Naval - e, meu Deus, o que é que as pessoas vão dizer, o filho de um jogador, imagine só, e essa coisa. A esposa, senhora amante e paciente, converte-se na triste sentinela do lar, chegando mesmo a arrumar um quarto de memórias, à maneira romana, no porão da casa, onde se tranca diariamente na contemplação de bilhetes de estrada de ferro, velhas fotografias e outros implementos de uma passada felicidade conjugal. 

Com a finesse que a caracteriza, introduz a MGM o elemento psicológico fazendo o filho ao mesmo tempo amar e não-poder-amar o pai - o que, à luz da psiquiatria, poderíamos chamar de um subcomplexo superior de inferioridade, ou atsob, para usar um termo hebraico.

Esmagado pelo sucesso e aisaince paternos, o pobre moço vai se ensimesmando e tornando um... (falarei ao vosso ouvido em vista da gravidade da situação: ou melhor, usarei a língua do F)... coforro varfarrar defere. Imaginem que coisa! 

Além de mãe e filho, perambula pela casa a acender freqüentes cigarros e a deslocar o sacro-ilíaco uma cunhadinha do jogador, representada pela deliciosa Audrey Totter, a qual é casada com um calhorda, ou melhor, um calhordas, para usar o singular-plural criado por minha amiga Zazi Corrêa da Costa. Totter tem olho em Gable, mas boca de siri. Sabe como é, não é: Gable é marido de Smith, irmã de Totter, e Totter é muito amiga de Smith. 

Apenas uma vez no decorrer da película, arrisca Gable uma olhada para o revestimento do referido conjunto ósseo de sua cunhada, mas, nada acontece. Não porque Totter não queira. Porque, não acontece nada mesmo. Ninguém tem nada para dizer, nem fazer na fita. Trata-se de um grande não-acontecer geral. 

Naturalmente, o homem das orelhas de abano é indistintamente amado e odiado por seus fregueses que mesmo quando o detestam pela sua indiscutível superioridade, o admiram pela sua nonchalance. Entre os últimos encontra-se Frank Morgan, recém desobjetivado aqui em Hollywood. Numa parada final entre Gable e Morgan, em que o primeiro vence sendo por sua vez vencido e terminando vencedor, entram uns gangsters de conivência com o cunhado calhorda, e, de revólver em punho, põem-se a proceder à coleta do numerário. Mas Gable os enfrenta com um sorriso nas orelhas, diz a eles que são todos uns salta-pocinhas e com um punhaço derruba o mais fraquinho (sim, porque o mais era pouco maior que eu). Dá-se, então, o estalo de Vieira na coragem do filho covarde, o qual vendo o gangster convenientemente seguro, atira-se sobre ele com a maior bravura, dedicando-se os dois por alguns segundos a dar lustre no assoalho. Alexis Smith reconquista o marido; o filho reconquista o amor e a confiança do pai, que por sua vez, reconquista o ânimo para novos papéis estereotipados; Audrey Totter, supõe-se, reconquista a liberdade, desembaraçando-se do calhorda. Só eu não reconquisto os 75 centavos americanos que paguei à impressionante loura da bilheteria, e que tenho a impressão já vi em algum lugar... Ah, agora me lembro: foi na bilheteria de um cinema em São Francisco. Ou terá sido em Chicago? Quer ver que foi em Phoenix, Arizona... Mas poderia jurar ter sido em Boston, tão parecida era! Enfim, não tem importância.

Fiquei, porém, preocupado quando, depois da exibição, saí para tomar um malted milk, ou terá sido um milk shake? Enfim, não tem importância. Comecei a pensar no que teria acontecido depois naquela família. A última cena mostra-os todos indo para casa tão caceteados uns com os outros que, ou muito me engano ou Totter deve ter acertado o pleno aquela noite. Gable parecia bastante enjoado de Smith, e Smith de Gabie. Para mim aconteceu miséria à socapa do Johnston Office. 

Fiador, ou Fred? 

Tratarei agora de The Great Sinner. Qualquer semelhança entre Gregory Peck e um escritor russo cujo nome procuraremos manter na sombra é mera coincidência. Ou pelo menos é o que dá a entender o letreiro inicial do filme. Pois ao contrário a coisa se aprestaria a interpretações gravíssimas, meus amigos, gravíssimas... 

Eu li O jogador, do referido escritor russo, há muito tempo. Confesso não me lembro mais do entrecho. Enfim, não tem importância. O que tem importância, apesar do tremendo desgaste de "talento", como eles dizem aqui (direção de Robert Siodmak, de saudosa memória; cenário de Ladisla Fedor e Christopher Isherwood; interpretação de Gregory Peck, Ava Gardner, Melvyn Douglas, Walter Huston, Ethel Barrymore, Frank Morgan e Agnes Moorehead), a única coisa que tem importância é Ava Gardner. Bem haja Irene, modista da MGM (Irene boa, Irene sempre de bom-humor, imagina Irene vestindo Ava Gardner!). Irene devia ir reto para o céu por mostrar tão o alabastro, como diz meu amigo Rubem Braga, dessa extraordinária deusa. Mon Dieu, ce qu'elle est ravissante! diria erguendo os braços o escritor Michel Simon. Muh nhih tah pah chuh chuh! seria certamente a expressão que ocorreria ao generalíssimo Chiang-Kai-Chek, hoje veraneando em Formosa. Mas realmente só mesmo em esperanto, para uma melhor conjugação de esforços e um mais rápido aparecimento da paz mundial e concórdia entre os povos. 

Fora Ava Gardner, a melhor coisa que e a fita tem é a má interpretação de todos os atores, sem falar na excelente falta de um bom cenário, uma boa direção e um bom trabalho de corte. A cena de Gregory Peck querendo empenhar até a alma, na casa de penhor de Agnes Moorchead, matá-la em seguida, seria quase passável se já não tivesse sido feita por Pierre Blanchar em seu esplêndido Crime et châtiment. Pena. Mas terá, sido uma distração certamente desculpável de Siodmak, que não se deve levar contra ele. Fazer bom cinema, quelle gaffe! 

Curioso como ambos os jogadores, quero dizer Gable e Peck, são em ambos os filmes seres infelicitados por moléstias graves, sendo que o primeiro não sabe o nome da sua: artéria escl... something; e o segundo ou muito me engano ou é epilético (por sinal a mesma doença do escritor russo cujo nome procuraremos manter na sombra, ahn-ahn...). Notam alguma semelhança, hein? Aliás tem sido tendência acentuada em Hollywood, desde a dos heróis e vilões se trocarem pontapés na cara, essa de romantizar ligeiramente os seus galãs com o que se poderia chamar a touch of disease. Clark Gable, em meio a interessante palestra com Mary Astor, no primeiro filme, curvou-se de repente, contorcendo-se de dores, tira uma pastilhinha de uma pequena caixa que tem à mão, ingere com presteza e conserva-se nessa posição maometana até que a artéria escle... something passe. Gregory Peck não. Peck cai duro feito o francês da semana passada, os olhos revirados, o aspecto em geral malsão e pouco amigável. Numa hora lá ele fica um tempo louco numa posição que me deixou engolindo em seco na cadeira, pois o pobre moço devia estar com a deglutição da saliva completamente cortada, sentado com a cabeça pendente para trás, quase que em ângulo reto com o resto do corpo! Não contente com esse desconforto, achava-se ainda possuído por um grande desespero dostoievskiano (aqui que ninguém nos ouça...). 

Walter Huston, coitado, não sabe representar mal. Para ele, é uma, dificuldade. Agnes Moorchead também. Fiquei com a maior admiração por ambos, pois, bons atores como são, representaram de representar mal a maravilha. Só para satisfazer à MGM. Quanto a Ethel Barrymore, a má representação nela vem de modo bem mais natural, e quase espontâneo. Ela e Frank Morgan - que Deus tenha sua santa alma! 

O filme é cheio de abismos autológicos, imprecações, choro e ranger de dentes. Dostoievskiano pra cachorro. Mas o único abismo considerável é o que se situa entre as espáduas nuas de Ava Gardner, que aquela sim! seria capaz de provocar quedas, grandes quedas... 

La femme à trent'ans 

Jennifer Jones é uma mulherzinha adorável. Seu rosto, ingênuo e ardente a um tempo, tem uma qualidade qualquer índia que lhe empresta o que se poderia chamar de: simulacro de temperamento. Mas é impressão. Aquele olhinho puxado é puramente pseudo, e a face mongólica deve-se com certeza a algum pesadelo que a senhora mãe dela teve, que era prisioneira de Tamerlão. 

Eu só sei dizer que a menina defende. Sua Canção de Bernardette fez época, ruim como era e tudo. Hollywood gostou de sua falta de talento e deu-lhe grandes papéis, de que ela se desincumbiu senão bem, pelo menos com louvável tenacidade. O fato é que Jennifer Jones pode ser comparada, com pouca desvantagem, às melhores atrizes americanas do cinema de agora, o que é de deixar o moral da pessoa meio baixo. Mas eu gosto dela. Não como atriz; como desenho de individualidade. São dessas coisas. 

Em Madame Bovary, no entanto, Jennifer Jones me deu mais arrepios que uma raspada de unha em cal de parede. A única coisa que ela faz com uma certa desenvoltura é trocar de vestido. Em sua interpretação da grande Emma, talvez a mais patética das personagens de ficção, Jennifer perde-se completamente nas limitações de sua individualidade, e de seu estúdio, conseguindo por um lado manter a mesma expressão em todo o decorrer da película, e por outro trocar de roupa com uma rapidez e versatilidade que matariam de inveja a passada Fátima Miris, transformista insigne. 

Na realidade, a impressão que se tem é que ninguém está sabendo bem do que se trata. Para que tanto fricote com uma mulherzinha burguesa com uma ânsia de viver, com uma verdadeira mania de mau passo? Por que é que ela não comete um crime qualquer de parceria com Arsène Lupin, e então se poderia encaixar Sherlock Holmes especialmente para resolver a parada? 

O resultado é que a pobre Jennifer passa os dias de boca entreaberta, mostrando temperamento; mas a impressão que tive foi de que ela estava resfriadíssima, ou presa de grande dispnéia. A coadjuvá-la, existem vários galãs de nome, como Van Helflin e Louis Jourdan, e até o jovem Alf Kjellin, cuja atuação no filme sueco Hets (A tortura de um desejo) foi excelente. Mas Alf Kjellin agora se chama Christiano Kellen, adquiriu um ar de camundongo encartolado e positivamente não sabe o que há de fazer de si mesmo ou de Jennifer Jones, sempre a olhá-lo de boca entreaberta. Eu confesso que se uma senhora ficasse me olhando daquele modo, e com aquela insistência, eu daria um jeito para passar-lhe o lenço assim meio à baiana. 

Na pele de Emma Bovary, Jennifer Jones não consegue se desembaraçar do fato de que é uma leading lady hollywoodiana, em todos os sentidos e conseqüentemente precisa fazer muita forcinha, muita forcinha mesmo. Isso, aliado ao seu grande encanto físico, é bastante simpático. Dá uma certa peninha dela, e por um momento a gente quase deseja vê-la integrada no papel que lhe foi atribuído. Tão bonitinha, tão ruinzinha. Enfim, cada um tem lá seus tico-ticos. Jennifer Jones tem mania de ser grande atriz: deixá-la... Seria pior se ela tivesse mania de saltar de bonde andando. 

Gustave Flaubert aparece sob a figura de James Mason no falso julgamento que envolveu seu livro imortal. O filme, é claro, nasce como um flashback desse julgamento. Hollywood nunca perderia um chavão desses; ou muito me engano ou Flaubert parecia bastante a contragosto em toda aquela marmelada. Mason não é das personas gratas de Hollywood, na qual já desceu o malho mais de uma vez. Mas a gente nunca sabe. Ultimamente, tem aparecido com bastante mais freqüência nas colunas sociais da colônia, representadas por essas três adoráveis matronas, esses três deliciosos bicúspides, esses bibelôs de Sears que se chamam Edda Hoper, Louella Parsons e Edith Gwynn - três amores que ficariam ótimos assim deitadinhas, todas vestidinhas de branco com os olhinhos bem fechadinhos e uma velinha acesa na mão.