voltarMovie

O espião invisível

A Manhã , 4 de Fevereiro de1943


A crônica ideal para esse filme seria um quadrado em branco, com o título tipografado em tinta invisível. Mas a época não está para tais desperdícios de papel nem de matéria, porquanto seja ilógico falar em matéria ao se pôr em evidência um ser incorpóreo. Porque o celulóide vem retomar a tradição wellsiana do Homem invisível, fazendo Jon Hall desta vez o translúcido descendente de Claude Rains, que, este sim, ficou para o resto da vida com o estigma da invisibilidade, a ponto de lembrar o conhecido nonsense: 

Once I saw upon a stair 
A little man who wasn't there, 
He wasn't there again today: 
How I wish he'd go away! 

Que quer dizer mais ou menos: 

Eu vi em certa escadaria 
Um homem que lá não havia; 
Hoje, de novo, à mesma hora: 
Tomara que ele vá-se embora! 

Assim é Claude Rains. Quando surge, é sempre primando pela ausência. E Jon Hall parece que lhe vai direitinho nas pegadas. O diretor, aliás, revelou um grande talento de inibição nessa película. Os atores são expressivos como... um negativo de fotografia. Gloria Massey é uma mulher de cera, bem embrulhada em celofane. Seu trabalho é incolor, inodoro, insípido como deve ser o da amada de um abantesma. Peter Lorre, que já foi um excelente vampiro em Düsseldorf, faz um barão japonês absolutamente vacumático. De japonês só tem os olhos; perdão: pratica também um haraquiri. Por falar em japonês, uma coisa que sempre me preocupava, quando eu via um japonês ou um chinês, era a razão por que, sendo raças facilmente confundíveis, eu podia distinguir tão facilmente um do outro, pelo simples instinto da antipatia do primeiro e da simpatia do segundo. Só depois percebi. É que o chinês tem uma cara centrífuga, enquanto a do japonês é centrípeta. A perspectiva fisionômica daquele abre-se para fora, enquanto a do último para dentro. Não é difícil de compreender, e é um bom método para pegar japonês na boa. 

Mas voltando ao não-filme: trata-se de uma ilusão completa. É tudo absolutamente vazio, transparente como o vidro, impalpável como, ai de nós, Rita Hayworth ou Dorothy Lamour. Uma lipotimia cinematográfica total. O espectador conserva-se na maior imunidade de cinema, trancado provisoriamente naquele mundo de opalina. A impersonalidade física do herói é completa. Vive um grande imponderável. Mas o não-trabalho mais impressionante de todos é o do ator que faz de Heiser, ou que raio o seja, o adiposo e neurótico subchefe do Serviço Secreto, nem me lembro mais o verdadeiro nome dele. A sua ação, com vistas ao cacófato, é lamentável. Representa ele uma cena trágica (a da visita do espião invisível ao seu cárcere) que provoca na gente um riso branco, que ninguém ouve, mas incoercível. Eu cheguei em casa dando ainda gargalhadas inexistentes. 

O filme tem uma coisa que sempre me diverte muito: uma importante conferência política onde se debate a ida do espião invisível para a Alemanha em missão secreta. Nessas cenas aparecem sempre uns velhotes muito bons, que balançam a cabeça - sim ou não - com um ar de grande ponderação. Imbele, mas intrépido, o nosso intérprete sai-se incólume da sua imperscrutável aventura. O espectador é que não o perde, volta ínscio, isto é, na mesma. O filme é puro éter, ou melhor, protóxido de azoto. Anestesia por gás hilariante.