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O direito de matar

Última Hora , 14 de Junho de1951

Justice est faite (em português: O direito de matar), o filme de André Caillote e Charles Spaak, com fotografias de Jean Bousgoin, é, mais que uma interrogação sobre o problema da eutanásia, um estudo que se pretende impessoal sobre a justiça, tal como é praticada dentro da nossa sociedade - a fria justiça de olhos vendados das salas de tribunal de boiserie alta. 

O filme não chega a qualquer solução, sob nenhum dos dois aspectos, deixando ao espectador a discussão final dos problemas envolvidos. Embora seja uma obra tratada com decência e dignidade, confesso que não chega a me satisfazer totalmente - não sei se por essa impessoalidade mesma de que o diretor quis se revestir para analisar, de um modo quase divino, os assuntos tratados, todos de ordem profundamente passional e humana. 

É claro que a um observador menos tímido não escapará um certo teor de simpatia com que Caillote maquilou as personagens mais vivas de tragédia, isolando os outros dentro de uma secura de vida que, em última instância representa o seu próprio julgamento. 

Mas sua falta de espírito de combate, sua reserva, sempre que se trata de apresentar uma solução positiva, deixa um vácuo na realização, embora ela seja do ponto de vista técnico (direção, cenário e fotografia) uma das coisas mais consideráveis que tem aparecido ultimamente em nossas telas. 

Premiado no Festival de Veneza, de 1950, Justice est faite conta a história de um júri de sete membros pertencentes a classes distintas de uma sociedade, diante de uma acusada, uma mulher que matou o seu marido, vítima de um câncer incurável e a seu pedido - mas sem que ele soubesse o momento quando. A decência completa de sua relação conjugal é dada por Caillote com grande finura de estilo, e creio que dela o espectador se pode compenetrar plenamente, não pertença por acaso à classe de três dos jurados que a condenaram no final. Mas o drama maior dessa mulher, o mais angustiante, é uma relação extraconjugal, uma relação de grande e completo amor que ela tem com um outro homem - e sobre cuja doença devem ter pairado as maiores dúvidas no espírito de, pelo menos, noventa dos espectadores presentes. 

A sociedade julga-se de acordo com os seus representantes no júri. A não ser duas pessoas, entre os jurados, todos os outros deixam incutir no julgamento reflexos de sua própria vida e experiência, o que vem, de certo modo, a constituir a tese do filme - uma tese batida, de resto - de que a justiça é falha. 

O filme carrega consigo o peso de uma dublagem malfeita e de um comentarista - em português positivamente de arder. Os planos sonoros são, em sua maioria, inexatos, deixando freqüentemente uma sensação de irrealidade no que se ouve. Além disso Justice est faite é por demais falado : difícil, aliás, fazê-lo de outro modo, tratando-se, como se trata, de um tribunal em ação. Tirante estes somenos, e umas poucas cenas que não existem na vida real, o filme merece muito ser visto. É inútil dizer que eu no júri teria dado o meu voto em favor da acusada, e ela estaria absolvida, e não seria nada do que foi. Mas, em vez, estou na redação, e é quase meia-noite e preciso ir embora, entre outras coisas porque a noite é bela, a noite é muito bela.