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O desabafo de Orson Welles

Última Hora , 29 de Maio de1952

Porque o grande cineasta resolveu apresentar Mack Sennett 
no Festival de Cannes - "Tudo isso é uma loucura" - 
Ali Khan Sempre Presente... Viva Zapata, Due Soldi di Speranza 
e Jeux Interdits, pontos altos nas exibições 


- Alors qu'est-ce que tu fais là? (Que é que estás fazendo aqui?) 

Olhei para aqueles dois metros de homem bêbado que assim me [reconheciam no] melhor estilo carioca. Não o via há uns cinco anos, quando acompanhara nos estúdios da Republic, em Holiywood, a filmagem do seu Macbeth. Tinha sido com o grande cameraman Gregg Toland, os únicos bons amigos que fizera entre aquela gente de cinema, durante a minha estada em Los Angeles. Aprendera a gostar dele, desde o tempo de sua passagem pelo Brasil. Um sujeito louco, destemperado, pantagruélico, mas com o coração grande como o mundo, e um talento danado. Achei-o mais avantajado ainda, com um ar ainda mais alucinado. 

- Orson Welles! 

- Tudo isso é uma loucura - me disse ele, enquanto assinava autógrafos com um ar de quem não faz outra coisa na vida. - Aqui é impossível falar. É pior do que candidato a prefeito. Telefona amanhã... 

Depois saiu como um tanque de guerra, bufando e imprecando coisas, seguido por um bolo de gente, tudo com um ar de peixinho piloto de tubarão. 

Isso foi à porta de uma festa, depois da exibição de um filme. À festa não compareci não. Dela só me chegaram ecos estranhos e ruídos abafados, como os que se devem ter seguido ao massacre de Guernica. 

O "LETRISMO" 

Apesar de tudo, Orson Welles é a maior figura do Festival de Cannes. É ele quem mais onda faz, em torno de quem mais basbaques se reúnem. Onde ele está há sempre flashes fotográficos. Outro dia, num cocktail da delegação americana, duas "letristas" o pegaram. O "Ietrismo", não sei se sabem, é um cisma do existencialismo. Uma besteira como outra qualquer, que consiste em negar tudo, não dar forma a nada, juntar letras à base do araque e formar palavras sem sentido, dar espetáculos de cinema sem cinema - enfim, mais uma demonstração sofisticada da juventude St. Germain-des-Près. São moças sujas e rapazes com o cabelo grande, gente que a gente vê que não vê banho desde a libertação de Paris. Uma das "letristas" deu-lhe um livro todo nessa base, com páginas impressas ao contrário, palavras (e eu vou bater na máquina de olhos fechados só para dar um exemplo) assim "j3ohbw-8, fwu5.ff". Orson Welles bradou aos céus, começou a juntar gente. Mr. Eric Johnston, czar do cinema americano, que estava por perto, deve ter ficado muito incomodado. Aliás, outro dia, num almoço, mr. Johnston deu mostra de não achar Orson Welles o que se chama exatamente um cavalheiro. Alguém contou o famoso incidente em Copacabana, quando Welles, alcoolizado, atirou de um sexto andar quase toda a mobília, do apartamento só porque viu escrito nos fundilhos de uma xícara o seguinte: Made in Japan, ou seja, "Feito no Japão". 

- Eu não entendo - disse o corretíssimo chefão do Johnston Office - por que é que onde Orson anda, há sempre um bando de mulheres à volta dele. Para mim ele não tem nenhum sex-appeal.... 


APESAR DE ALI KHAN 

Nem deve ter mesmo. Mr. Johnston, apesar de ter um perfil que perde apenas para o finado e grande John Barrymore, não é exatamente uma pessoa com que Orson Welles quisesse dar uma de automóvel. Ele prefere Rita Hayworth, a grega Irene Papas, que parece uma lava fulva - e muito bem faz! Isto, apesar de Ali Khan lhe estar sempre no caminho. Ainda há dias Orson Welles convidou a Papas para um papo no Hotel Carlton. Ela desceu mas disse que só poderia ficar um momento, pois tinha um compromisso. Depois chegou o compromisso para vir buscá-la na pessoa de Ali Khan. Fala-se que Orson Welles só teve essas palavras, que podem não constituir nenhum [dito] célebre, mas que mostram bem que ele no fundo acha o príncipe um grandessíssimo empata... 

Há, ça, por exemplo... 

FESTA 

Ali Khan deu uma festa no seu palácio cerca de Cannes, fui convidado mas não compareci. Nós, os Moraes, não vamos assim às festas na casa do primeiro vigarista que aparece, não. Soube que o príncipe dançou de cara colada com várias estrelas, sobretudo a grega Irene Papas e a canadense-americana-turco-babilônica Ivonne de Carlo, que também esteve por aqui com a sua incomparável antipatia. A coisa não deve ser muito agradável, porque o príncipe sua um bocado quando dança. Mas a possibilidade de ser "uma beguem", ou lá como se chama esse negócio de ser mulher de príncipe hindu, dá forças às moças para enfrentar a abundante transpiração do herdeiro do velho Khan, o qual, pelo ar de cachorro São Bernardo com que anda, não deve ir muito longe. Diz-se que o jovem Khan (nem tão jovem... já com uma boa carequinha incipiente...) dançou mais com Ivonne de Carlo que com a Papas - mas ninguém sabe ao certo qual das duas papa o príncipe, ou vice-versa. 

A MAIS LINDA 

Conheci os diretores italianos Alberto Lattuada e Renato Castellani, este detentor, com Orson Welles, do Grande Prêmio do Festival de Cannes, pelo seu ótimo Due soldi di speranza (Dois vinténs de esperança). Castellani é bem mais simpático que Lattuada, que também não pode querer ter tudo, pois já é marido de Carla del Poggio - uma ruiva espetacular, possivelmente com Dolores del Rio a mulher mais linda do Festival. Quanto a Dolores del Rio, dessa há que falar em maiúsculas. Com cinqüenta anos, não dava confiança a ninguém em toda a extensão da Croisette, ou seja, da avenida beira-mar de Cannes. Depois da exibição do filme hollywoodiano Viva Zapata, sobre o famoso revolucionário mexicano, vi esta não menos famosa levantar-se de sua poltrona com um olhar que estivessem por aí o diretor Elia Kazan e o ator Marlon Brando (que como Zapata ganhou o Prêmio de Interpretação Masculina do Festival) e... não sei não. Eu não sou surdo-mudo - isto é, não sei ler o movimento dos lábios das pessoas. Mas ou muito me engano, ou nos lábios de Dolores del Rio havia nitidamente a formação de uma palavra feia - de resto muito corriqueira por aqui. 

O MELHOR 

O cinema italiano foi de longe a melhor coisa de Cannes - apesar de não ter havido nada que se comparasse a um Ladrão de bicicleta, de Vittorio De Sica, ou a um Roma, Cidade aberta, de Roberto Rossellini. A apresentação de Dois vinténs de esperança, de Castellani, e O capote, de Lattuada, sobre o conto de Gogol, assegurou aos italianos o melhor conjunto do Festival. Mas para mim o filme que de todos mais me agradou como cinema foi um francês, apresentado fora da competição, Jeux interdits, do diretor René Clement. Uma beleza de película, marcada por uma profunda e simples poesia, sobre uma menina cujos pais morrem metralhados por um avião nazista, em meio a uma leva de retirantes, e que se vê abandonada em pleno campo. Uma rústica família de agricultores a recolhe, e o filme todo é a história dessa garotinha cuja vida começa sob o signo de muitas mortes a que ela assiste do fundo de sua perplexa inocência: a dos seus pais, a de seu cachorrinho, a de um dos membros da família que a abriga. Ela acaba com um guri do sítio de quem fica inseparável por só pensar em morte, em cruzes de madeira, em cemitério. Fazem os dois um cemiteriozinho de bichos e para tal furtam as cruzes do cemitério da localidade. Apesar de ser a idéia da morte que dá o tom da película, não há morbidez na narrativa - pelo contrário. É um conto cheio de amor, mas que pela sua estranheza lembra um pouco o romance de Allain Fournier, Le Grand Meaulnes. 

O curioso é que, um dia antes de ver o filme eu fora experimentar um famoso restaurante de peixe perto de Cannes, La Mère Ferrat, numa cidadezinha chamada La Napoule. Lá estava um encanto de menina loura, um bichinho de uns cinco ou seis anos, que nos deliciou a todos pelo seu natural desembaraço cantando junto com o patron, o gordo filho da Mère Ferrat que entretém os circunstantes. Pois bem: no dia seguinte eu reconheceria a menininha como a heroína de Jeux interdits, cujo nome é - tomem nota - Brigitte Fossey. 

MACK SENNETT 

Um dos pontos altos do Festival de Cannes é a venerável presença nestas paragens do velho Mack Sennett, pai da comédia cinematográfica, criador de alguns dos maiores astros e estrelas, descobridor de Chaplin, inventor do gênero das bathing beauties, isto é, "as belas banhistas", precursoras das pin-up girls e portanto do maillot de banho. Avô do biquíni, como ele próprio se chamou na entrevista coletiva que deu à imprensa. 

Essa entrevista fará parte de uma segunda reportagem pela sua excepcional importância. Foi, do ponto de vista do Festival, o seu momento cultural mais importante, junto com o I Congresso Internacional de Autores de Filmes, sobre que comentarei também. Foi assim como ver a história falar por sua própria boca. 

Orson Welles apresentou oficialmente Mack Sennettt ao público do Festival, numa cerimônia que se seguiu à exibição de algumas de suas melhores comédias. No meio do discurso, Orson Welles declarou o cinema morto. 
E Rasho-Mon, soberbo filme japonês vitorioso o ano passado em Veneza? E a escola realista italiana? E o próprio Sennett, cinema vivo ali diante dos olhos de todos? 

Não teria havido uma certa precipitação sua nesse atestado de óbito, Orson Welles? Moribundo, possível... Morto, nunca.