voltarMovie

O cinema e a mágica

A Manhã , 26 de Outubro de1941

Meu avô é a única pessoa que eu conheço que não acredita no cinema. Ficou com os calungas da Lanterna Mágica, E vá alguém convence-lo de que aquilo tudo existe realmente, que Greta Garbo ou Carlitos são criaturas de carne e osso como qualquer um de nós; ele se abespinha! "Tolices, meu filho", me diz sempre. "Patacoadas de jornal. Aquilo tudo são bonecos. Pois então eu não vi, no meu tempo..." 

Eu acho fabuloso. Às vezes converso com os seus noventa anos sobre essas coisas. Não tenho coragem de tentar convertê-lo realmente à existência do cinema. Nem sei se poderia. Meu avô é uma rocha. Seu pai, meu bisavô, morreu por teimoso. Cismou um dia de ir dormir a sesta em cima de um muro alto. Todo mundo o teria avisado: "Olhe que você tem o sono pesado e é capaz de cair!" Meu bisavô teria respondido: "Se eu cair isso é só da minha conta." Foi, dormiu, caiu e morreu. Bobagem querer convencer o filho de tal pai de que o cinema existe de fato... 

Isso tudo me vem a propósito de Topper, que voltou com as suas aventuras. Como a mágica progrediu no cinema! Eu ainda me lembro do tempo em que o velho Francis Ford, fazendo um rei louco numa fita em série, via na palma das suas mãos dançar uma porção de bailarinas semi nuas, pequeninas como as mulherzinhas-libélulas do Quebra-Nozes de Disney. Todo mundo achava fantástico. Cecil de Mille, esse faraó, assombrou também, uma vez com uma visualização da estrada dos mortos em seu caminho para o julgamento final. O filme se chamava Corpo e alma, se não me falha a lembrança. E O homem invisível, de Welles, foi um tiro. Que campo! Topper surgiu. Fez-se comédia da morte. O fantasma ou o ser invisível substituiu o leão dos velhos pastelões, que surgia no quarto do criado preto, eriçando-lhe os cabelos na cabeça ou enrolando-lhe as calças perna acima, de pavor. Pensando bem, as coisas não se modificaram muito. Mudaram os truques, mas a bossa é a mesma. O cinema simplesmente se escangalha. Como deixar de rir? O riso, no fundo, é o tédio da ordem e da lógica das coisas. A pessoa que não risse, que conseguisse ser o não-riso, faria rir, por antítese. Foi o caso de Buster Keaton ou Harry Langdon. Não compreendo como as pessoas que riem e se divertem com o absurdo das situações cômicas não se comovam e não sintam a arte diante de uma pintura de Picasso, por exemplo, e vejam ali, mas diferentemente, o absurdo que compreendem num Topper ou num clown de circo. Tudo isso é parte de um mesmo sentimento em luta. É que as pessoas só querem se divertir, não pode ser outra coisa. Não entendo que ainda falte uma sensibilidade para a arte moderna, só por que ela é aparentemente absurda. Se as pessoas fossem com um espírito menos despreconcebido ver, digamos, a Exposição das Crianças Inglesas, sentiriam que o mesmo absurdo que amam nas fitas do Topper vive, transformado em beleza, nas telas magistrais desses meninos. No entanto, caçoam desse absurdo. Que pensar? Estará a razão com meu avô?