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O castigo de Chaplin

A Vanguarda , 9 de Setembro de1953

A revista O Cruzeiro vende, sabidamente, uns 400 mil exemplares. Há quem diga que vendeu mais. Não importa. Mas quando esses 400 mil exemplares transmitem a 400 mil compradores e assinantes (sem contar os filantes) noções como propaganda para uma senhora ou senhorita com o nome ou pseudônimo de Margarida Melo, em artigo chamado "O castigo de Chaplin", há que revidar, porque essas noções constituem falsidades flagrantes que vão ser lidas, meditadas e absorvidas por dezenas de milhares de pessoas, em muitas das quais, ignorantes e mal preparadas, irão certamente calar fundo. 

O que d. Margarida diz, resumindo a ópera, é que foi muito bem-feito que a estátua da Liberdade tivesse fechado o sinal para Chaplin "pelo seu crime de felonia contra a família que o acolheu" porque ele recebeu dela, muito mais do que do resto do mundo, os aplausos e os milhões com que passeia pela Europa a sua grande burguesia disfarçada em pretensas idéias socializantes; viveu, durante trinta anos, numa nova pátria, sugando-lhe as vantagens sem lhe devolver a menor parcela de sacrifício. Reclama de Chaplin não se haver naturalizado, pois "nem seria possível compreender, em tão singular figura de eleito dos deuses, que trocasse o peso milenar do seu esnobismo britânico pela vulgaridade de um americanismo de quatro séculos". Por isso tudo d. Margarida bate palmas às autoridades "que renegam o traidor de sua generosa acolhida, negando-lhe o visto para voltar ao seio do povo que ludibriou por vinte anos". Depois ela pede que cada um ponha o caso em si, imaginando "Chaplin argentino, morando no Brasil trinta anos, enriquecendo conosco e destratando, ao fim de toda a sua carreira, feita à nossa custa, o Brasil e os brasileiros". E pergunta: "Gostariam que ele voltasse?". 

Não contente, d. Margaret Mellow põe-se na pontinha dos pés e grita assim: "E pode-se imaginar bem o que representa para tão orgulhoso indivíduo, depois de trinta anos de insuperante conforto americano, ter de acomodar a sua velhice - numa idade em que não pode mais existir poder de adaptação - à mesmice da paisagem de cartão-postal da Suíça, ao racionamento eventual da calefação e à dificuldade das doses de uísque, acrescida do imposto de luxo ou de luxúria, como bem denominam os povos de língua inglesa?". 

Bom...É claro que eu não vou responder a todas as bobagens ditas por d. Margarida. Vou mesmo deixar que ela ganhe o dia por mim. Mas parece-me uma falta de respeito não só de d. Margaret, como da direção de O Cruzeiro a publicação de uma tal orchata, no momento mesmo em que o filme Luzes da ribalta, esse indizível hino à vida, essa incomparável obra de gênio, está sendo exibido nos nossos cinemas. E não é só isso. Lembro a d. Margaret que Hollywood deve muito mais a Chaplin do que Chaplin a Hollywood. Que não há um americano consciente que não diga isso. Que Chaplin deu ao cinema, não só ao americano, como ao do mundo inteiro, e a cada um de nós, imensamente mais do que lhe poderia ser dado, nunca. Que, além do mais, ele sempre pagou vultosas cifras do imposto de renda, servindo assim, com o seu trabalho, à comunidade no seio da qual criou sua extraordinária obra artística - a maior do nosso século. E quanto a ele não se ter naturalizado, é uma simples questão de fidelidade à terra natal, inarrancável do peito de um homem inteligente e de caráter. De caráter, d. Margaret.