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O bueiro

A Vanguarda , 29 de Setembro de1953

Muita gente me tem perguntado, desde o início da publicação em folhetim da minha novela "O bueiro", aos domingos, neste vespertino, se ela foi inspirada no filme de Billy Wilder The Big Carnival (exibido no Rio com o nome de A montanha dos sete abutres). Já por duas vezes acompanhei a parte publicada com uma nota explicativa dizendo que não, que minha idéia antecede qualquer outra no gênero, que tinha vindo à luz no período que decorreu entre a ideação e a publicação de "O bueiro".

O caso de A montanha dos sete abutres é uma dessas espantosas coincidências que não saberia como explicar. Apesar de ter vivido cinco anos em Hollywood e de ter contado a uns poucos amigos americanos o entrecho da novela, acho pouco provável que qualquer deles a tivesse passado adiante a Billy Wilder. Para mim a coincidência de "O bueiro" com A montanha dos sete abutres vem de um acidente ocorrido em Los Angeles, justamente (coisa estranha!) quando eu ali me encontrava tocando minha novela para a frente. A coisa abalou os Estados Unidos e o mundo inteiro pelo seu patético, e é bem possível que tivesse servido a Billy Wilder de ponto de partida para a criação da história de A montanha dos sete abutres. Foi quando aquela menininha losangeana caiu dentro de um bueiro abandonado, existente num terreno baldio, e mobilizou o heroísmo de vários operários que, ao longo de dois dias, revezaram-se na infernal descida, escavando furiosamente o solo pedregoso na ânsia de salvar a jovem Kate. As câmaras de televisão não pararam de rodar um só instante, de modo que o país inteiro pôde assistir, de coração na boca, à tentativa inútil de salvamento. Kate estava morta quando atingiram seu corpinho, encaixado em posição fetal, numa curva do bueiro a quase cinqüenta metros de profundidade. É fácil avaliar a emoção em que fiquei ao ver subitamente a minha história assumir mutatis mutandis um teor real, justo no momento em que a escrevia. Lembro-me que fiquei tão horrorizado que a larguei de mão completamente, só vindo a retomá-la quando de volta ao Brasil, dois anos depois.

Daí, certamente, a extraordinária coincidência. Não deve ter sido difícil a um bom argumentista de Hollywood criar uma situação altamente dramática à base de um acidente assim - e foi certamente o que aconteceu com A montanha dos sete abutres, filme, aliás, que nunca cheguei a ver. Mas o meu "O bueiro" é coisa muito mais antiga. Vem da infância, do tempo em que minha avozinha paterna, d. Maria da Conceição de Mello Moraes - vovó Neném - contava-me a história do "Candinho do Poço", o lavrador que, em São Paulo, ali pelo primeiro qüinqüênio do século, caíra num poço onde morrera por falta de competência da organização encarregada de seu salvamento. Lembro-me vivamente de detalhes da narração de minha avó: a mulher do lavrador debruçada à boca do poço, gritando para dentro: "Cândido Isaías!"

Nunca mais me esqueci essa história. Dar-lhe forma novelesca, ajuntar-lhe situações novas, abrir-lhe perspectivas mais amplas foi apenas obra de vida, experiência e amadurecimento. O fato de Billy Wilder ter imaginado coisa semelhante foi, evidentemente, azar meu. Paciência. Eu imaginei primeiro.