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Mas francamente, Dona Carmem...

Última Hora , 21 de Agosto de1951

Sob a manchete, "Não creio que o Instituto de Cinema venha a realizar coisa positiva", a produtora Carmem Santos vem ajuntar mais um golpe - desta vez dado com um grampo de chapéu - aos muitos de que tem sido vítima o pobre Instituto Nacional de Cinema. Tudo isso aconteceu sábado, em entrevista dada à Tribuna Popular, dentro da enquete realizada por aquele órgão sobre os problemas do cinema nacional. Vistas de longe, as palavras da produtora Carmem Santos parecem sofrer da mais completa falta de critério, mas em compensação quando a gente as examina de perto é que tem a certeza de que sofrem mesmo. Parafraseando dona Carmem, nós também não cremos que ela, em sua qualidade de produtora, venha jamais a realizar coisa positiva sem o Instituto de Cinema - e eu me refiro aqui ao Instituto que está sendo planejado por Alberto Cavalcanti e sua equipe. A nenhum outro, mas a este e só a este. 

É claro que nem todas as palavras ditas por Carmem em sua entrevista sofrem dessa falta. Algumas sofrem do mais completo desvario. Ela diz, por exemplo, que a equipe de Cavalcanti não tem brasileiros. Que eu saiba, todos os membros da equipe que está ajudando Cavalcanti a fazer o planejamento são brasileiros. Eu, por exemplo, penso que seja um. Nasci na Gávea, de pais brasileiros, filhos de pais brasileiros, filhos de pais brasileiros. Só na quarta geração tenho elementos estrangeiros na família. De resto, não poderia representar o Brasil no exterior, em minha capacidade diplomática, se não fosse brasileiro nato. Se dona Carmem quer se referir aos técnicos trazidos por Cavalcanti da Inglaterra - todos elementos de primeira água - devo dizer-lhe que esses técnicos não estão participando do planejamento do Instituto no presente estágio. Estão alguns empregados na Vera Cruz, outros no desvio, à espera. Serão aproveitados mais tarde, nas suas tarefas específicas, entre as quais uma das mais importantes é a de formar novos técnicos brasileiros, pois como dona Carmem sabe, os bons que temos não dão para o gasto. 

Aliás, nem todas as palavras de dona Carmem, como as estampadas na manchete, são do mesmo teor. Ela fala até com bastante tino do problema do trust de exibição do sr. Luiz Severiano Ribeiro, o lobo das estepes cinematográficas brasileiras. Esse tino, filho da amargura, deveria predispor bem dona Carmem, em sua qualidade de produtora, com relação ao Instituto Nacional de Cinema, de vez que só este regulará a distribuição de filme virgem e disporá anualmente sobre as quotas de produção, distribuição, com o fito exclusivo de proteger o produto nacional, que é quem mais trabalha e menos percebe. Os Cr$ 2,50 que ela recebeu, no total, com a programação dupla de sua Inconfidência Mineira, e o abacaxi americano Ali Babá e os quarenta ladrões, num exibidor paulista, ilustram bem a necessidade dessa proteção. Francamente, dona Carmem... 

Depois, lá cai dona Carmem de novo no apriorismo: o problema de censura prévia que ela tem medo possa cair no que foi a Cine Cittá, ou as empresas cinematográficas de Hitler, visa apenas proteger justamente essas coisas de que ela faz tanto alarido, que gostaria tanto de ver aproveitadas pelo cinema nacional, "os temas genuinamente brasileiros, o folclore, a nossa música, todo o nosso patrimônio cultural". É uma censura diretamente vinculada ao problema dos direitos autorais no cinema, de que o Instituto, feito como o quer Cavalcanti, protegerá de modo cabal. Assim éque ninguém poderia fazer Capitu, de Machado de Assis, dançar samba de gafieira, porque a censura prévia mandará o roteiro de volta ao produtor. Assim será, dona Carmem. Francamente, dona Carmem... 

Quanto à censura de qualidade, com as categorias A, B e C - meu Deus! já foi dito milhões de vezes que ela não interfere na produção e exibição de filme algum, exercendo-se apenas numa questão que me parece ultradecente de onerar menos com taxas os filmes de qualidade melhor, e dar-lhes prioridade no tocante à distribuição dos prêmios previstos por lei e à exportação para o mercado externo. Uai! A sra. quer ou não quer fazer bons filmes? A sra. quer ou não quer competir? Francamente, dona Carmem... 

E depois, esse negócio da sra. falar de coisas positivas... Eu me lembro que encontrei a sra. em 1938, em Ouro Preto, filmando os exteriores da sua Inconfidência. Anos e anos depois, quando eu soube do lançamento, pensei: "Poxa, mas como é que ela vai fazer com os atores? Essa gente já deve estar ficando velhinha..." 

A sra. sonha um bocado, dona Carmem... Cavalcanti não sonha, não. Cavalcanti aprendeu a planejar e a realizar, dentro do realismo do movimento do documentário inglês que influiu no cinema de todo o mundo. E basta por hoje, dona Carmem, porque já está me dando gastura…