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Lembrando Carlitos

A Manhã , 11 of November of 1941

Outro dia eu estava reparando num passarinho andando sobre um muro. Era uma coisa impagável. Que o digam Rodrigo M.F. de Andrade e Prudente de Moraes, neto, meu grande primo, com quem eu me achava. De repente dei com Rodrigo balançando a cabeça com um ar de constatação comiserada, e nos rimos os três do ridículo bichinho. 

Poucas coisas vi tão cômicas. Caminhava aos saltos, bruscamente, com um ar consciencioso de quem está tomando todas as providências, fazendo tudo para as coisas correrem do melhor modo. Com uma mobilidade espantosa, mas que se podia perfeitamente decompor numa série de movimentos estacados, lá foi ele pelo muro afora, janota, feliz, sem perder por um segundo o seu chão de vista e que não deixou, com essa leviandade de ave, de beliscar inutilmente, decerto para fazer ver que tudo estava de ótima saúde e que este mundo é um mundo muito mais de passarinhos que de homens. 

Aquilo lembrou-me Carlitos. Não foi a primeira vez, aliás, que um movimento súbito, um modo de andar, um instante genial de vida me lembra Carlitos. Uma vez foi minha garota, Susana, de pouco mais de um ano. Estava paradinha no meio da sala, e eis senão quando, solicitada por uma descoberta qualquer de ordem misteriosa, decerto um sentimento novo do mundo, ou uma palavra que lhe nasceu, pôs-se a andar com grande e tensa rapidez monologando o seu fabuloso discurso silábico, com gestos descontrolados onde, evidentemente, procurava encaixar uma definição. Passeou agitada pra lá e pra cá, com uma ginga de boneco projetado vertiginosamente em cinema, não se tendo esquecido, por associação, de ir à estante mexer num livro sobre cachorros que adora folhear. Carlitos me veio como uma frase de música. Foi um instante divino. 

Carlitos me veio também através de Otávio de Faria. Não se parecem especialmente esses dois seres tão caros ao meu coração, a não ser que são ambos pequenos e andam ambos com os pés marcando dez para as duas. Foram antes fulgurações de movimentos que num revelavam outro, pois que há um no outro. Às vezes, ao encontro marcado, eu chegava tarde. Otávio esperava, eu podia vê-lo, parado, olhando cartazes de cinema ou não importa o quê. Do momento em que me via (não era sempre, repito, eram privilégios do instante ... ) marchava para mim como o próprio Carlitos não marcharia, com o mesmo esquematismo, a mesma pantomima, a mesma dureza na souplesse; perdoem o francês, como quem está provisoriamente contido num movimento que é preciso resolver para dar lugar à existência de um novo. 

São, isso, sutilezas? Não sei; no meu caso é a minha maneira de sentir Carlitos no que há de afetuoso nas coisas e nas criaturas. Ele pode me aparecer assim, tantas vezes, como já tem aparecido, transformado em nuvem, passarinho, minha filha Susana, Otávio de Faria, tanta coisa que é, aparentemente, menos Carlitos que um fantoche, um palhaço de circo, um saltimbanco ou um malabarista, através dos quais nunca o senti muito intensamente. Não terá a criatura de Chaplin nascido mais da compreensão do movimento puro das crianças e dos pássaros ingleses - que freqüentam igualmente as ruas pobres de Londres - que da sua experiência de vaudeville vivida na célebre trupe de Fred Karno?