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Hollywood - Epístola a Prudente de Moraes Neto

Sombra , 1 of January of 1950

Sôbolo mui prazente arrabalde do Bosque Sagrado 

Primo, hoje te falarei sobre o Bosque Sagrado, o correspondente vernáculo do vocábulo Hollywood. Contarei de como, passeando por estes boulevards, nome gálico de muitas vias públicas aqui, tenho deparado com os mais curiosos aparatos e utilidades, que me fazem estacar boquiaberto diante das montras com ganas de tudo comprar; mas, ai de mim! tantos são os compromissos que mesmo os largos dólares americanos que percebo em nada me estimulam o vezo.
 
Começarei por dizer, Primo, que o Bosque Sagrado tem colinas, mas não tão íntimas como as de aí de terra. Aqui são docemente afeiçoadas pela mão do homem, que nelas constroem luxuosas vivendas com casinhola para automoventes, e tanque de nadar, cuja curiosidade maior para o tamoio é possuir água dentro, água Primo! de um lindo azul cansado pela substância química denominada cloro; de resto mui irritante para a córnea. Aí, ao revés, é o negro que nelas habita, e se bem para automotores, tanques de nadar ou mesmo de lavar, e de cloro então é melhor não falarmos, que se houvesse talvez fosse convinhável desinfetar com ele os detritos que empestam tais comunidades. Se não me trai a memória, impera nessas doces colinas cariocas uma miséria feia e suja que só mesmo música de batucadas, o uso da aguardente de cana e a desobediência contumaz ao sexto mandamento tornam suportável. Mas não quero ferir-te os ouvidos com digressões menos agradáveis. Perdoa-me o doesto. 

O arrabalde do Bosque Sagrado, Primo, onde pousa o clima, vírgula, mais ameno da terra, e de modo geral tão sereno quanto Juiz de Fora, quando lá já não mais assistiam os nossos queridos esculápios Pedro Nava e Sá Pires, a quem peço-te abraces por mim. O conjunto urbano dá a impressão de uma grande cidade a que houvessem ceifado à altura dos segundos pavimentos. As avenidas cruzam os boulevards em diagonais perfeitas e, possua o viandante uma bússola de bolso, que saiba ler estrelas, jamais se perderá neste subúrbio, que seguem aquelas a direção leste-oeste, e nestas aponta o quadrante a linha norte e sul. É ver também que nomes sugestivos têm, mnemônicos de vaga escatologia, como Lacienega, Cahuenga, Melrose e quejandos. 

Cumpre dizer-te que tais nomes foram legados pelos primeiros colonizadores da terra, que além de espanhóis, eram padres. Mas naquele tempo, Primo, dedicavam-se, tão-somente, ao cultivo de Deus e da uva, tradição ainda hoje mantida numa próspera indústria, a dos vinhos californianos, que, mal haja, não possuem a qualidade dos europeus ou chilenos, aparentando-se antes ao produto sul-rio-grandense pela facilidade com que fermentam no estômago provocando a terrível azia, e outras disfunções capazes de provocar A Náusea. 

Possui o Bosque Sagrado, sem embargo, instituições do mais agradável teor, como os chamados drive-in, que Bernardim ou Gil traduziriam como "entre com o automóvel" se, ao tempo, não fosse o transporte provido por ginetes e caleças. Tratam-se, Primo, de pequenas casas de pasto em forma de meia-lua, junto às quais encostam os automóveis, provocando a aproximação precípite de lindas raparigas vestidas de homem, que ao se locomoverem despertam apetites outros que não os da simples carne hamburguesa. Pena é que, recém uma triste inovação houvesse sido introduzida, para mecanizar o serviço tão doce e eficazmente levado a cabo por essas filhas de Eva. Mercê de um pequeno carro, à maneira do que existe no nosso belo Pão de Açúcar, dão as ordens e voltam os alimentos, que se come sem o prazer primitivo, pois eu confesso, Primo, que entre um bondinho e uma mulher, prefiro de muito a última. 

É soberbo, Primo, o modo como se consomem os chamados sandwichs nesta terra, dos mais variados feitios, com ingredientes em geral envoltos em tênue folha de alface, a que recobre uma leve camada do que aqui apelidam French dressing, ou seja, "vestido francês", em tradução talvez precária, mas que quer na realidade insinuar o conhecido molho mayonnaise. Ingerem todos, é curioso notar, as suas refeições voltados para a parede em frente, onde se localizam vertiginosas cozinhas, e sentam-se em bancos giratórios como os de piano, divertindo-se muita vez em inserir uma moeda de cinco centavos americanos numa pequena caixinha de música que provê harmonias as mais diversas; desde as valsas de vaqueiros até o alucinante be-bop, nova forma do extravagante jazz, cuja dissonante polifonia tem escapado à compreensão de mais de um cultor da música moderna. 

De resto, não é apenas no comer que assim procedem. Também, nos botequins, a que chamam bar, bebe o freqüentador voltado para a parede em frente, sempre revestida de um grande espelho, e tenho que muito de indústria, pois sendo colossal o consumo de bebidas espirituosas, tal disposição obriga o bebedor a olhar-se constantemente, espetáculo que, pouco a pouco, o deve ir deprimindo e, conseqüentemente, facilitando a ultimar a auto-intoxicação. 

Mas conforme já ponderei, não quero entrar na consideração de assuntos desagradáveis ou controversos, embora seja do parecer daquela ilustre dama brasileira em trânsito que, em aprazível palestra, me fez ver a necessidade de vivermos todos "mais de acordo com a sociologia", asserção que, estou certo, merecerá aplausos de Gilberto Freyre, o Mestre de Recife. Não só minha posição não o permite, como poderia eu ferir assim a modéstia de amigos nossos inveterados abstêmios, que só de ouvir falar em álcool, põem-se a tremer de indignação de um jeito que, não fora outra a causa, e dir-se-ia estarem atacados do degradante delirium tremens. 

Prefiro falar-te, Primo, de certas máquinas que aqui vi, e que fariam a delícia de amigas nossas de prendas domésticas, como as sempre lembradas Graciema e Nieta, sem falar na nossa prezada Dinah. Uma existe que lava e enxuga a roupa sozinha, sem o auxílio humano. Vi ferros de passar que se utilizam simultaneamente da moderna eletricidade e do antiquado sistema a vapor, impedindo com este queimaduras que aquele pudesse infligir ao tecido. Notável é também o processo pelo qual é possível mandar coisas tangíveis pelo sem-fio de tal forma que em querendo, podes telegrafar a alguém uma dúzia de rosas. As torradas saltam espontaneamente das torradeiras, oferecendo-se ao comedor no justo ponto, o qual pode abrir asinha um repasto de latas, desde a sopa à sobremesa. Extraordinárias, neste particular, são as ervilhas, verdes como contas de colar, capazes de criar efeitos altamente decorativos nos pratos arrumados e, eventualmente, dramáticos, quando acontece estarem estragadas, o que ao contrário de aí, aqui é raro, a não ser que se as deixe na lata depois de aberta, o que provoca o fenômeno da oxidação. Devo segredar-te, entretanto, a bem da verdade, que tais alimentos carecem de gosto ao paladar, o qual a pessoa é forçada a dar por fora, com recurso à velha galheteira, à mostarda e outros condimentos de uso familiar. 

Estou certo, porém, que esteticamente, ó Esteta, apreciarias a cor dos tomates, das beterrabas, e até da alvar batata-doce. São tomates rubicundos; beterrabas pungentes, sem aquele trincar de areia comum às colherinhas como se tratasse de um sorvete. Por falar nele, Primo, aqui os há dos mais admiráveis, cobertos de untosas camadas de chocolate e em porção bastante para dar a um habitante dos trópicos aquela famosa dor de olhos que os mui muito gelados costumam ocasionar quando tomados às pressas. 

A vida no Bosque Sagrado, caro Primo, corre num fluxo maravilhoso, geralmente sobre quatro rodas. Imagina tu que existe aqui um automóvel para cada três pessoas, ou duas pessoas e fração - lá se me vai a lembrança - e segundo estatística recente, o possuidor de automóvel tem 50% de probabilidades de atropelar um dos dois pedestres em apreço, ou a fração de um deles. Felizmente, havendo eu adquirido um carro, embora tenha mais probabilidade de matar, as tenho também maiores de sobreviver que meus dois infelizes semelhantes a pé. 

Mas não só a vida, também a morte corre aqui num fluxo admirável, Primo. Caem aviões freqüentemente, os desastres assumem proporções fantásticas e comete-se só nesta Nossa Senhora de Los Angeles da Porciúncula, uma média de duzentos crimes diários. Destes, alguns são verdadeiramente assustadores, como os ataques a mulheres e crianças, sendo que algumas os assaltantes desmembram com grande paciência, como aconteceu à desafortunada Black Dhalia, no caso de que terás certamente ouvido falar. 

No entanto, Primo, apesar destas pequenas desvantagens, tenho que ainda constitui vantagens o ser-se mulher no Bosque Sagrado; tanto assim, Primo, que no Bosque Sagrado a mulher abunda. E que formosas! Altas como jovens palmáceos, possuem pernas admiráveis, e não é incomum o te surpreenderes ao deparar, mais acima das portadoras, com faces em adiantado estado de decomposição. O cabelo se lhes rola em cascatas de ouro sobre os ombros firmes, por vezes possantes, embora a última tendência seja mantê-los curtos, como ao tempo em que brilhavam na tela as voluptuosas Mae Murray e Clara Bow. Ao rirem lembram anúncios de dentifrícios, e algum dia ainda examinarei as gengivas a alguma, pois quer me parecer que possuem mais dentes que o comum dos mortais. Gostaria que visses uma que conheci, popular vedeta de nome Ann Sheridan, ao dizer-te ela uma banalidade com os olhos dentro dos teus a boiar nas caldas da luxúria. O sangue desce-te instantaneamente aos membros inferiores, Primo, de tal sorte, que a cabeça gélida, pálida e balbuciante nada te resta senão procurares o apoio de algum objeto firme que, ai de ti, por desgraça não pode ser a própria causadora da perturbação. 

Há que vê-las também, Primo, dançando nos clubes noturnos, com os olhos semicerrados, e tão satisfeitas de si mesmas que poderiam encher de um só sopro uma câmera pneumática. Uma eu vi, a loura Lana Turner, a quem a natureza arredondou em todas as arestas, que enquanto bailava com um, fazia a outros olhares mais picantes que o efeito produzido pela ingestão da capsicum fructerscens, a nossa conhecida malagueta; notando eu, entre outras coisas, achar-se o que com ela dançava com os olhos praticamente fora das órbitas. A jovem de nome Ava Gardner, que parece a antítese dos Dez Mandamentos, desenvolve ao praticar o bailado afro-cubano Rumba uma tal geometria das esferas que, estou certo, submetesse-a algum físico ou matemático a um experimento, e descobriria alguma famosa impossibilidade como a quadratura do círculo ou o moto-perpétuo. Em geral, titubeiam os homens ao falar com tais beldades, embora façam sempre por disfarçar a própria perturbação com levar a mão esquerda à altura do coração, à maneira daquele cavalheiro, que, inquirido sobre certa questão transcendente, viste responder, assumindo atitude idêntica, nos seguintes termos: "Eu sou fanático." Pois são, Primo, verdadeiras nereidas, como diria o poeta Hermes Fontes, a arrebatar os mares da tentação, e do pecado. Não sei se terá sido impressão minha ou talvez o curioso efeito do centeio, que é como sabes a base do licor escocês, mas juraria haver visto um cidadão a meu lado desagregar-se inteiramente à passagem de belíssima Valquíria destas bandas, a incomparável Marlene Dietrich. Lembro-me vagamente haver ficado no ar um cone de fumaça encimada por uma espécie de cabeça de cogumelo, justamente como acontece ao explodir a nova arma de guerra, a aterradora Bomba Atômica. 

Não fora a hora tardia, Primo, e a necessidade de repousar-me e muitas coisas mais poderia contar. Mas, ai! há que dormir, mesmo no Bosque Sagrado; dormir sob este céu de estrelas entre palmeiras e anúncios, à espera do amanhã que me encontrará na boa disposição de sempre para enfrentar a lide, com o humor jovial e sadio que caracteriza, na pátria ou longe dela, esse espécimen raro da fauna humana, essa figura de retórica, esse pleonasmo, esse desconhecido - O Homo Brasiliensis!