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Há quase dois anos atrás,... (s/ título)

- , 1 of January of 1940

Há quase dois anos atrás, iniciando eu, a convite de Cassiano Ricardo, a seção de cinema em A Manhã, para cuja direção tinha sido chamado o ilustre acadêmico, escrevi um credo que me indispôs de saída com todos os distribuidores de filmes no mercado, sem falar nos críticos e cronistas para quem o cinema e a crônica sempre foram uma arte de diversão. A página era realmente ousada e mesmo impertinente. Tinha passos como esses: "Creio no Cinema, arte muda, filha da Imagem, elemento original de poesia e plástica infinitas... Creio no Cinema puro, branco e preto... Em qualquer outro, o que transige com o som, a palavra, a cor, não posso e não quero crer..." 

Já era estar procurando briga. E ela apareceu, naturalmente. Primeiro, foram os distribuidores. Zangaram-se, fizeram queixa de mim ao diretor do jornal. Que era insuportável, que aquilo não era maneira de criticar (eu usava expressões, em relação aos cinemas e aos filmes, que tinham o poder de irritar até à carta anônima - recebi várias - os pequenos vendilhões de celulóide, como "pífio", "droga", "joça", "passem de largo", "não gastem dinheiro à toa", e similares). Depois, uns poucos escritores puseram-se a me caçoar, uns chamando-me anacrônico, outros requintado, outros ainda, e com mais espírito, de uma boa besta. 

Quero honestamente confessar o profundo gosto que senti diante de todas essas manifestações de raiva ou fingido descaso com que saudaram todos, comerciantes e escritores, o odioso retângulo da quinta página que eu toda a manhã escurecia de feias invectivas contra o mercantilismo do moderno cinema em geral e de algumas produtoras em espécie. Representava, de algum modo, uma reação. Desde o advento do falado, época também do aparecimento de curta duração do Chaplin Club, que marcou um tento como realização de gosto e cultura, graças a inteligência de seus fundadores, entre os quais se conta Otávio de Faria, Plínio Sussekind e Almir Castro, um espírito de aceitação indistinta se veio formando no público pari passu do processo de involução sofrido pela arte da imagem com a adaptação espúria de novos elementos como o som e a palavra, essa sobretudo, que vieram ferir-lhe a integridade metafísica e estética, facilitando a transcrição cinematográfica de toda a sorte de temas literários. Nada disso era cinema, não é preciso dizer. Era romance, biografia, peça de teatro cinematizados, nunca um modo espontâneo de conhecimento, nunca a visão natural do movimento em seu jogo de luzes e sombras. O que devia ser uma sucessão rítmica das imagens fez-se continuidade literária. Os doutores Frankensteins desse novo monstro, filho bem filho do século, não se limitaram a uma cirurgia plástica; operaram, na sua danação de ganhar dinheiro à custa de sua monstruosa e passiva criação, uma diabólica trepanação, na qual se adicionava ao cérebro autêntico partes desintegradas de cérebros mortos. O importante era que a arte não pudesse impor sua própria inteligência. A confusão era necessária para criar no público a ilusão da comicidade ou do patético daquele ser desajustado, palhaço da sua própria grandeza, mas que se danasse ele, desde que seu aparecimento importava numa casa cheia. 

Pode parecer na verdade retrógrado um tom dessa forma intransigente diante de uma forma que, na mão de alguns homens de talento deu realmente a impressão de acrescentar qualquer coisa de novo à arte, e eu garanto que ele não existiria, ou se existisse, eu dele pediria desculpas, bastasse para isso sentir-lhe a verdade e estética. Em poesia, o verso livre representou uma conquista sem medida histórica possível. O impressionismo em pintura foi quase como uma nova dimensão descoberta à arte. Experiências como as de Proust ou Joyce são, no romance, verdadeiras Américas descobertas, de tal modo a extensão e vigor da terra convidam à aventura de sua penetração. Tal não foi o caso em cinema, quando, aí por volta de 1930, após as primeiras experiências bem-sucedidas, os produtores resolveram quebrar caminho à estrada real da arte, possivelmente mais longa e difícil, mas que, sem embargo, era a única a oferecer uma real sensação de desconhecido, pela sedução fácil da aventura turística do som e da palavra, valores óbvios e efêmeros na imagem em movimento, pois a obrigavam, como a obrigaram, a se socorrer do tema mais que da ação, da continuidade mais que da sucessão, do diálogo mais que do gesto e da expressão, do teatro mais que da pantomina, do ator mais que da criatura humana em sua verdade natural. 

Não que o fenômeno se tenha produzido por geração espontânea. É fácil sentir, num segundo de atenção orientada, uma espécie de transformação que se operou no mundo, de há uns dez anos para cá, a par do processo político cujo apodrecimento só agora estamos presenciando. Uma espécie de transformação que criou nos homens a ilusão da simplicidade: não a verdadeira simplicidade, a que vai buscar alimento nas fontes naturais da vida, nas forças básicas da natureza, no preço estimativo das coisas, mas uma outra epidérmica, resultante da substituição mecânica do sentido pela sensação, julgando do valor das criaturas, obras de arte, acontecimentos, coisas existentes, segundo a impressão imediata que provocam. Isto vale, naturalmente, a dar toda a força ao mito de aerodinamismo, que se transportou da máquina, onde tinha funções precípuas, para o complexo humano, penetrando o próprio domínio dos sentimentos. Formas horizontais se verticalizaram, e vice-versa, sem a menor necessidade. Formas naturalmente baixas, esgalgaram-se, num anseio inútil à ganhar em elegância. Formas elementares sofisticaram-se, tornaram-se fugidias, sem tato possível. Todas as superfícies poliram-se e adquiriram um ar de imparticipação. O próprio ideal do conforto, comum a todos, desvirtuou-se da sua natureza, fez-se dogma, passou a ser um ideal de imobilidade dentro da vertigem. A idéia de labor, ou de lavor, penetrou-se do tédio. O mecanismo administrativo encheu-se de novas palavras para a justificação das quais erigiu-se toda uma burocracia. Para atendê-la em sua ilusória complexidade, novas máquinas e novos organismos foram inventados, e tantos eram que, segundo o programa filosófico preestabelecido, foi necessário prefixá-los. E as coisas começaram a perder seus nomes, a descaracterizar-se. Nada melhor para dar cumprimento a um programa de subversão política que um ambiente assim. Começou a nascer uma literatura especial para o momento, rápida, sensacional, puramente narrativa. Uma música excitante, que se casava com os ritmos mais à flor da pele, mais puramente sensoriais das criaturas, mas sem nenhuma finalidade orgânica. Um teatro que procurou de melhor modo atender às necessidades dessa embriaguez, explicando o temperamento desses pequenos monstros sociais itinerantes e spleenéticos. Dono do som e da palavra, o cinema se encheu, através de seus produtores, de toda essa superfetação de arte. Realmente, para que fazer a massa subir à arte, educando-a, o que requer esforço... e afinal de contas, para que se esforçar, não é, quando é tão fácil criar na massa a ilusão da arte, fazendo-a descer até ela? A massa se contenta com pouco, quer é rir, sonhar com os galãs e heroínas perfeitos em seus gestos de amor e suas frases de compreensão... A massa é fácil de contentar. Todo o impossível é sonho para ela. Demos-lhe pois o impossível, já que ela paga para tê-lo... 

De resto, a lógica é inatacável. A coisa é essa mesma, e é fácil a gente se conformar com ela. A tendência é sempre para o conformismo, para tocar a vida para a frente. No entanto, nada mais sórdido. Eu nunca me conformei. Essa divisão de povo e elite é uma coisa que positivamente não é decente. Evidentemente o povo não pode ser uma só elite, pois há sempre as diferenças individuais de caráter, temperamento, inteligência e instinto. Mas a verdadeira, a única tendência possível deve ser da transfiguração do povo sem perda dos seus valores específicos. Descaracterizá-lo é que me parece monstruoso. E é no entanto o que se vê por toda a parte, política e artisticamente. Grupos de líderes, política ou artisticamente, giram sempre em volta da sua própria ambição. O povo fica lá em sua casa, indo ao cinema, indo ao teatro, indo ao comício, aplaudindo sempre para se justificar do gasto de dinheiro ou de energia despendidos. Não conheço país, com exceção da Rússia - e eu não sou de todo comunista - que não tenha, nesses dez últimos anos, vendido o seu povo à exploração capitalista dos aproveitadores de situações, os maus editores, os maus patrões, os maus conselheiros políticos, os maus diretores de serviços públicos, os maus mentores espirituais, os maus educadores do corpo e da inteligência. O regímen é o da propaganda dirigida, unilateral, fazendo da vontade dos maiores a vontade dos humildes. Em vez de se destruírem preconceitos de raça ou de classe, orientam-se esses preconceitos para a satisfação ilusória das raças ou classes de quem alimentam a vaidade, na prestação de um constante desserviço.