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A propósito de Flaherty

Última Hora , 19 de Setembro de1951

Está em cartaz esta semana um filme, O menino e o elefante, assinado por dois diretores: Zoltan Korda e Robert Flaherty. Esqueçam o primeiro. O segundo é o que se pode chamar um gigante da cinematografia. Teve ele pouco a ver com a película - a não ser na famosa "dança dos elefantes", como ficou conhecida entre a gente do métier - mas quem se lembra de filmes seus como Nanook do Norte, a história da luta pela vida de uma família de esquimós, ou Homem de Aran, a história dessa mesma luta na agreste e escura ilha da Irlanda, quem se lembra desses filmes sabe que não exagero ao chamá-lo assim. 

Documentarista sem par, Flaherty, através do seu másculo realismo, fecundou como poucos a arte do cinema. Seu estilo simples e direto foi sempre um extraordinário transmissor de verdade e poesia - poesia sim! essa que vive latente na matéria e na realidade mais que em qualquer outra coisa. 

A esse homem que parece dizer em cada imagem: "vive!" vida pareceu feia. A mim por exemplo, cada vez que saio de um filme seu acrescenta-me ele em confiança e dura fé no homem e na beleza do seu breve destino. Tendo filmado Nanook meses a fio em pleno inverno nas regiões geladas - meses de horríveis privações, em que acompanhou em todos os transes esse que passaria a chamar "meu amigo Nanook" - criou Flaherty uma obra de um poder cinematográfico tão grande que ela parece situar-se num nicho próprio na cinemateca da arte. A vida humilde desse esquimó heróico - que morreria de fome, ele e toda a sua família, no inverno seguinte ao da filmagem - inspira um tal otimismo, uma tal vontade de viver, uma tão grande força que por si só destrói todo o negativismo, todo o entreguismo, toda a deletéria filosofia a que se abandonou a inteligência ocidental.
 
O mesmo acontece com Homem de Aran. Nesse penedo dramático plantado no selvagem mar da Irlanda, filmou Flaherty a vida de seres mudos e fatalizados pelo amor à pedra nativa sobre a qual pacientam suas existências. O mar - o grande, o imenso mar de Aran - mais mar que qualquer outro oceano, captou-o Flaherty em toda a sua dramaticidade, em toda a sua solene e solitária beleza. Ali entre as pedras onde as mulheres deitam punhados de terra e onde plantam a batata que, além do.pescado, constitui seu principal alimento, revelou Flaherty para os homens, de maneira eterna, a grandeza da vida do amor ao solo, e a dignidade simples da luta. 

Flaherty morreu... morreu há pouco tempo, e pouco se disse dessa morte. Sua obra cinematográfica só o desgaste constante do tempo como a realidade em que sempre se inspirou para viver.