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A propósito da crônica “Fracassou o filme de Orson Welles?”

A Manhã , 8 de Novembro de1942

Chamou-me a atenção, há coisa de dias, uma crônica do meu ilustre colega de A Noite, Francisco de Assis Barbosa, onde havia menção de um telegrama no qual se faziam maus prognósticos sobre o all American film de Orson Welles, Tudo é verdade, título que ninguém sabe ao certo ainda se é verdadeiro ou não. O cronista cinematográfico de A Noite mostrava-se, ele que é um dos seres mais joviais da Terra, realmente penalizado, e com todíssima razão, pois não é brincadeira a gente ficar vendo um sujeito dormir seis meses em cima de uma tacada, estudando todos os truques do bilhar, inteiramente à vontade, fazendo como se estivesse em casa dele, e de repente declarar que passou-lhe a vontade de jogar ou coisa semelhante. 
Sobretudo que Orson Welles dedicou-se com amor a esse filme - posso testemunha-lo quanto a parte brasileira da filmagem, a que por várias vezes assisti -, estudando, com minúcias que até não lhe ficam bem, toda a continuidade a tomar, reescrevendo os argumentos, remodelando os roteiros, ensaiando até à exaustão total. O pobre tem pés chatos. Uma vez encontrei-o de chambre, as pernas de fora, os pés gozando as delícias de uma bacia morna. Nunca vi expressões de bem-aventurança mais absolutas. Nossa conversa girou, essa tarde, quase que exclusivamente sobre essa malsinada parte do corpo humano. Orson Welles falou-me sobre pés como lord Jacques sobre a existência humana, na floresta de Arden, com o mesmo íntimo gozo, o mesmo sereno humor, o mesmo senso anatômico e a mesma profundidade da personagem de As You Like It. Nesse dia acreditei que um grande documentário pudesse, sair daquela salada pan-americana. 

Assim, assustou-me a crônica de Francisco de Assis Barbosa. Fiquei mesmo com vontade de escrever uma carta kerniana ao jovem demolidor de móveis, perguntando-lhe se ele era a man or a mouse, se tudo aquilo era fita - ou fita mesmo, se podia ser ou estava difícil. Depois fiquei me lembrando... Fora uma manhã de domingo. No dia anterior eu soubera que Orson Welles tinha chegado do Ceará, já brigado com a RKO; preocupado justamente com o destino do seu filme, dei um pula ao seu hotel, em Copacabana, para saber em que pé andavam as coisas. Foi até engraçado, porque, avisado pela portaria, ele confundiu meu nome com um certo diretor argentino, Mora ou lá o que seja, e mandou dizer que não estava. Soube depois que a pessoa em questão aumentava-lhe a chatura dos pés, mas o que é certo é que por isso esperei-o mais de meia hora no hall. Quando desceu, tomou um susto ao ver-me, fez um grande espanto, riu-se muito da confusão (que eu espero fosse verdadeira ), e convidou-me para uma volta pela praia. Lá então soube dos detalhes do incidente. Mas no que se refere ao filme, garantiu-me Orson Welles que estava quase pronto, precisando apenas de pequenas filmagens em estúdio, e que seria exibido, não houvesse sobre isso a menor dúvida. Disse-me mesmo que viria ao Brasil para o lançamento.
 
Vi Orson Welles exagerar muitas vezes, mas mentir, nunca. Entre outras coisas, declarou-me que a Rockefeller Foundation tinha interesses na produção, e a coisa não seria para a RKO a carne assada que eles estavam pensando, não. Que iria a Washington resolver aquela parada e possivelmente em agosto de 43 estaria de novo entre nós para assistir em primeira mão a Tudo é verdade. 

E praza aos céus o seja. De qualquer modo são afirmações de um homem consciente, que tem lá suas loucuras, é fato, mas tem cumprido fielmente o que promete, a não ser, pelo que consta, promessas de casamento, prescrições médicas e encontros com hora marcada. Mas com isso ninguém tem nada a ver. 

Transmito-as aqui a Francisco de Assis Barbosa e aos leitores interessados. Eu cá tenho um palpite que o tal telegrama é bem capaz de já ser propaganda do filme.