voltarPara uma menina com uma flor

Praia do Pinto

Há uma praia dentro de outra praia. Uma é a praia do Leblon, e a outra não é praia - é praia do Pinto. Há uma praia dentro de outra praia, uma onde vem bater, verde-azul, a onda oceânica, e outra onde vai desaguar o Rio escuro, em sua mais sórdida miséria. 

Há uma praia dentro de uma praia. Ah, brinquemos de falar bobagem, brinquemos de inventar cirandas, porque a verdade é que há realmente uma praia dentro de outra, uma praia de fome, sujeira e lama, e ela se chama praia do Pinto. Fica no Leblon, como um imundo quintal raso de apartamentos de arrogante gabarito. Não há nessa praia areia branca, barracas coloridas e coxas morenas absorvendo ultravioleta. Nessa praia que não é praia, é favela, há, isso sim, barracões de lama e zinco cheirando a imundície: há a Sífilis dormindo com a Tuberculose, no chão úmido da terra; há um enxame de Disenteriazinhas engatinhando no lodo, um mundo de Verminosezinhas patinhando nos próprios excrementos, e há Descalcificações e Reumatismos Deformantes muito velhos, pitando solitariamente na noite fétida em torno. 

São centenas de casebres sórdidos, a abrigar milhares de seres humanos, cuja única diferença de mim é a pele negra, negra talvez para esconder melhor o próprio sofrimento na treva povoada de moléstia, molejo de mulher e música malemolente. São milhares de dentes brancos a iluminar a noite espessa de samba, álcool e luxúria, enquanto, em torno, as criancinhas morrem, os meninos lutam no aprendizado necessário da valentia e os macróbios da resistente e dura vida negra se imobilizam como estátuas invisíveis, no pensamento de antigos deuses nunca esquecidos. 

É a praia do Pinto, praia da pinimba, praia da porcaria. São negrinhas de ventre pontudo, levando, apenas púberes, os frutos da ignorância e do ócio dos homens. São negras a carregar não ânforas gregas, mas latas d'água para o cotidiano patético. São negros esgalgos, de camisa de malandro, a se experimentarem em passos de capoeira. São dois malandros de siso grave a se encontrarem, no enflorescer de uma aurora cor de seio, para disputar, a faca ou a navalha, o abandono de uma mulata com pele de dá e o olhar de vem. É o golpe rápido, o estertor surdo, o ventre vomitando as vísceras de uma só vez. 

É música. Música de violões se contrapontando. Música de batucada na tendinha; música de Ogum no terreiro. Às vezes, a voz estelar das pastoras, enredando em fios cristalinos a trama de um samba de enredo ou de uma marcha de sua escola. 

Adiante, os apartamentos miram o mar, o mar que por vezes ruge e se precipita, demagógico, como a querer varrer do bairro a miséria da favela inelutável. Atrás é a Lagoa serena, rodeada de casas brancas, gordas e espapaçadas. 

No meio é a praia do Pinto, a praia do Pinto, a praia do Pinto!