voltarPara uma menina com uma flor

Cobertura na Gávea

Todo mundo, como eu, devia ter uma cobertura. Pois ter uma cobertura significa ser Capitão de Imóvel, ter uma ponte de comando de onde observar a vida, e às vezes a morte, nos imóveis de menor calado, sempre de olhos baixos ante vosso orgulhoso gabarito. Significa poder espraiar a vista sobre o grande mar urbano, a conter em casas e apartamentos o amor que se debruça para fora das janelas, em busca de comunicação. Ter uma cobertura significa dominar; não dominar como o fazem os ditadores e os tiranos: dominar com os olhos - e também em tristeza e solidão. Significa ver sem ser visto, desvendando a rápida nudez de moças em flor a caminhar em seus aposentos: e amá-las quase sem desejo. 

Em verdade, coisa bela é ser dono de uma cobertura, e poder ficar em intimidade maior com a noite, mais próximo do céu, em colóquio com as estrelas, nessa vaga embriaguez que provoca a mirada do infinito. É poder sentir a palpitação noturna da vida nas luzes acesas dentro das casas, a insinuar uma precisão de paz em meio ao grande conflito humano. Ter uma cobertura representa ser montanhês na planície dos homens e das coisas; respirar o ar menos poluído do complexo urbano; poder falar, ouvir música e amar em alto e bom som, sem a preocupação de incomodar o próximo. 

Sim, todo mundo, como eu, devia ter uma cobertura na Gávea com um belo terraço, de onde se descortina, ao norte o Pão de Açúcar; ao sul o Hipódromo; a leste a réstia luminosa de Ipanema e a oeste o Corcovado - o Cristo de costas, discreto, inatento. Ter, sobretudo, uma cobertura sem grandes luxos, simples, sincera, pintada de branco e de teto baixo na qual-se possa ir e vir com um ar de comandante satisfeito com o seu barco. 

Hoje posso olhar à minha volta para esses amplos espaços que me cercam, para a reserva florestal que enche de verde o meu escritório e o meu quarto, e dizer-me com orgulho : sou um homem rico ! 

Na realidade, de que mais preciso? 

Proprietário de poemas e canções, senhor de uma mulher e uma paisagem, dono de minha vida e minha morte - não serei eu por acaso o homem mais rico desta terra?