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Carta do ausente

Montevidéu , 1962

Meus amigos, se durante o meu recesso virem por acaso passar a minha amada 
Peçam silêncio geral. Depois 
Apontem para o infinito. Ela deve ir 
Como uma sonâmbula, envolta numa aura 
De tristeza, pois seus olhos 
Só verão a minha ausência. Ela deve 
Estar cega a tudo o que não seja o meu amor (esse indizível 
Amor que vive trancado em mim como num cárcere 
Mirando empós seu rastro). 
Se for à tarde, comprem e desfolhem rosas 
À sua melancólica passagem, e se puderem 
Entoem cantus-primus. Que cesse totalmente o tráfego 
E silenciem as buzinas de modo que se ouça longamente 
O ruído de seus passos. Ah, meus amigos 
Ponham as mãos em prece e roguem, não importa a que ser ou divindade 
Por que bem-haja a rninha grande amada 
Durante o meu recesso, pois sua vida 
É minha vida, sua morte a minha morte. Sendo possível 
Soltem pombas brancas em quantidade suficiente para que se faça em torno 
A suave penumbra que lhe apraz. Se houver por perto 
Uma hi-fi, coloquem o "Noturno em si bemol" de Chopin; e se porventura 
Ela se puser a chorar, oh recolham-lhe as lágrimas em pequenos frascos de opalina 
A me serem mandados regularmente pela mala diplomática. 
Meus amigos, meus irmãos (e todos 
Os que amam a minha poesia) 
Se por acaso virem passar a minha amada 
Salmodiem versos meus. Ela estará sobre uma nuvem 
Envolta numa aura de tristeza 
O coração em luz transverberado. Ela é aquela 
Que eu não pensava mais possível, nascida 
Do meu desespero de não encontrá-la. Ela é aquela 
Por quem caminham as minhas pernas e para quem foram feitos os meus braços 
Ela é aquela que eu amo no meu tempo 
E que amarei na minha eternidade - a amada 
Una e impretérita. Por isso 
Procedam com discrição mas eficiência: que ela 
Não sinta o seu caminho, e que este, ademais 
Ofereça a maior segurança. Seria sem dúvida de grande acerto 
Não se locomovesse ela de todo, de maneira 
A evitar os perigos inerentes às leis da gravidade 
E do momentum dos corpos, e principalmente aqueles devidos 
À falibilidade dos reflexos humanos. Sim, seria extremamente preferível 
Se mantivesse ela reclusa em andar térreo e intramuros 
Num ambiente azul de paz e música. Ó, que ela evite 
Sobretudo dirigir à noite e estar sujeita aos imprevistos 
Da loucura dos tempos. Que ela se proteja, a minha amada 
Contra os males terríveis desta ausência 
Com música e equanil. Que ela pense, agora e sempre 
Em mim que longe dela ando vagando 
Pelos jardins noturnos da paixão 
E da melancolia. Que ela se defenda, a minha amiga 
Contra tudo o que anda, voa, corre e nada, e que se lembre 
Que devemos nos encontrar, e para tanto 
É preciso que estejamos íntegros, e acontece 
Que os perigos são máximos, e o amor de repente, de tão grande 
Tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil.