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A brusca poesia da mulher amada (III)

Rio de Janeiro , 2004

Rio de Janeiro
A Nelita 

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado 
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido herói sem mácula 
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina 
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos 
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências 
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas 
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia. 
Eis que se anuncia de modo sumamente grave 
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância já me chega o rastro. 
É ela uma menina, parece de plumas 
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos ventos 
Empós meu canto. É ela uma menina. 
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina 
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes 
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos 
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos 
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas 
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. 
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa 
Em rodopios nítidos 
Criando vácuos onde morrem as aves. 
Seu corpo, pouco a pouco 
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo 
Como uma escura rosa voltejante 
Surgida de um jardim imenso em trevas. 
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos! 
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos! 
Alvoroçai-me, auroras nascituras! 
Eis que chega de longe, como a estrela 
De longe, como o tempo 
A minha amada última!

 
Rio de Janeiro, 1950.