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A XIII Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza (Um gato que usa óculos...)

Última Hora , 27 de Setembro de1952

Um gato que usa óculos "mefistofelinos" - com o siroco africano, baixou também ao lido um bom filme sobre o continente negro - Frederic March, que com Pierre Fresnay, Michel Simon, Chercassov, Orson Welles e Ralph Richardson, forma a belle équipe dos modernos atores de cinema, ganhou o prêmio de interpretação masculina - grandes diretores e filmes regulares - os filmes portugueses e brasileiros deram dor de cabeça nos patriotas 

Veneza, setembro - O prêmio dado a John Ford me pareceu francamente injusto. Tenho muito respeito pelo velho Ford de O cavalo de ferro, A patrulha perdida, No tempo das diligências, As vinhas da ira, A longa viagem de volta e mesmo My Darling Clementine, para não protestar contra o novo Ford de O fugitivo e agora desse O homem quieto. O filme é, sem dúvida, bem-feito - [o que se] poderia esperar de John Ford, decano da cinematografia, grande diretor? Mas por outro lado, mostra um Ford inteiramente entregue ao espírito comercial de Hollywood; um Ford sem dignidade, fazendo caçoada de sua Irlanda, descaracterizando, por exagero de traços, o velho povo ilhéu. A cor do filme é linda, não seja essa a briga, e se houvesse um prêmio para cor eu acho que The Quiet Man o levaria de barbada. Mas dar-lhe um dos três Grandes Prêmios de Leão de Prata me parece forte. Porque, pensando bem, pensando em No tempo das diligências e na Longa viagem de volta, o que The Quiet Man é mesmo, é uma indignidade. John Ford está acabando como artista. 

CINEMA 

Já o filme de Rossellini, Europa 51, com todas as imperfeições e defeitos de improvisação que caracterizam o diretor de Roma, cidade aberta e Paisà, é um bom filme, embora eu tenha achado um pouco demais dar-lhe um dos três Grandes Prêmios Leão de Prata. Trata-se de uma obra corajosa, rusticamente bela, a que não falta grandeza mesmo sem ser um grande filme. O júri declarou publicamente só não haver dado o Prêmio de Interpretação Feminina a Ingrid Bergman, porque sua voz foi dublada no filme. E é bom mesmo de fato o trabalho da Bergman. A mulher melhorou muito, muito mesmo, com a mudança de ares e de marido. Mas causou espécie o seu não-comparecimento à sessão de Europa 51. Ingrid Bergman tinha sido vista em Veneza por várias pessoas, dois ou três jornais anunciaram-lhe a chegada; mas nem por isso deu confiança à Mostra. Ficou cuidando dos gêmeos. 

A Rossellini fui apresentado. Um homem tenso, com um rosto sério e enérgico, a que por vezes um belo sorriso adoça extraordinariamente. Não o achei particularmente simpático, mas em todo o caso, é um homem com uma cara comum - coisa que se vai fazendo cada vez mais rara em nossa sociedade. 

Fredric March, o fabuloso intérprete americano (que, com os franceses Pierre Fresnay e Michel Simon, o russo Chercassov, o americano Orson Welles e o inglês Ralph Richardson, forma a belle équipe dos modernos atores de cinema), ganhou, como era de esperar, o Prêmio de Interpretação Masculina com seu grande trabalho em A morte de um caixeiro-viajante. Uma das interpretações mais soberbas que já me foi dado a ver, num filme de bastante boa qualidade e que para mim representou o ponto alto da seleção americana. Pois apesar de haver os Estados Unidos ganho o Prêmio de Melhor Seleção Nacional, a opinião geral foi que tanto a seleção francesa como a inglesa eram de mais peso: sobretudo a primeira. A Itália é que andou fraca este ano; com exceção de Europa 51 e de outros (Altrit tempi, de Blasetti, Il brigante di taca del luppo, de Pietro Germi, e Lo sceicco bianco, de Federico Fellini), não ajuntaram nada à produção italiana de melhor qualidade. Não eram, positivamente filmes para um Festival. Dos filmes americanos Phone Call from a Stranger, de Jean Negulesco, Carrie, de William Wyler, The Quiet Man, de John Ford, O milagre de Fátima, de John Brahms, Ivanhoe, de Rich Thorpe e A morte de um caixeiro-viajante, de Laslo Benedeck, somente este último diz alguma coisa de vivo e de novo, através da interpretação magnífica de Fredric March. O filme de Wyler foi uma decepção. O de Negulesco, mais bem-feito (Munnally Johnson ganhou com ele o Prêmio de Melhor Roteiro), é coisa também já ultramanjada. O de John Ford é o que já se disse. Ivanhoe é mais uma palhaçada, com negócio de atirar muita flecha e essa coisa. O milagre de Fátima envergonhou os portugueses presentes, gente de boa categoria como o jornalista Novais Teixeira e o ator António Villar. Enfim, eis aí o Prêmio de Melhor Seleção Nacional, do Festival de Veneza. 

COMPARAÇÕES 

Compare-se com a França: Les Belles de nuit, de René Clair, Jeux interdits, de René Clement (dois ótimos filmes); A p... respeitável de Marcello Pagliero (um filme mal realizado, mas de forte conteúdo social), Les Conquerants solitaires, de Claude Vermorel (película que, com o vento siroco que veio da África e por uns dias esquentou terrivelmente estas praias, trouxe também do continente negro uma visão cheia de calor humano) e La Bergère et le ramoneur (esplêndido desenho-animado de longa-metragem de Paul Grimaut e André Serrut, com roteiro de Jacques Prévert). 

Ou compare-se com a seleção inglesa: apesar de pequena, três filmes igualmente bem-feitos e bons, Mandy, de Alexander Mackendrick e o excelente realizador de Whish Galore e The Man in the White Suit, que quando chegarem aí ninguém deve perder, o qual mereceu uma menção do júri por haver exprimido de modo comovente um problema especificamente técnico, qual seja o da educação dos surdos-mudos; The Importance of Being Earnst, de Anthony Asquith, que todos consideram uma esplêndida versão cinematográfica de peça de Wilde; e The Brave Don't Cry, um bravo filme sobre homens das minas, dirigido por Philiph Leacock, e na boa tradição da escola do documentário inglês, tal como foi feito por John Grierson e Alberto Cavalcanti. O primeiro é, aliás, o seu produtor. E sob esse ponto de vista, o único defeito que o filme tem é de talvez poder ser considerado como o primeiro fruto "acadêmico" da referida escola, por um certo conformismo do exagero do underphying que o monotoniza. 

O voto certo havia sido, a meu ver, dar o primeiro Grande Prêmio a René Clair; os três Grandes Prêmios Leão de Prata a René Clement, Kenji Mizoguchi e Alexander Mackendrick; o prêmio da Melhor Seleção Nacional à França. O resto pareceu a todos bem votado: Fredric March pela melhor interpretação masculina; Carmem Villon pela melhor cenografia, em The Importance of Being Earnest; George Auric pela melhor música em La P... respectueuse; aliás, a de Renzo Rossellini é também muito boa em Europa 51, e Nunnally Johnson pelo melhor roteiro, em Phone Call from a Stranger. As homenagens prestadas pelo júri ao desenho La Bergère et le ramoneur e a Ingrid Bergman foram também de perfeita classe. 

Dos piores filmes do Festival falarei em próxima reportagem. Posso desde já adiantar que o filme brasileiro Areião esteve bem na frente entre os piores. Uma lástima, a sua apresentação. Eu, que o tinha visto em sessão privada, confesso que tive "uma dor de cabeça fortíssima no dia da sua exibição oficial". 

FIGURAS IMPORTANTES 

Mas esqueci de uma coisa: duas figuras de maior importância que andaram por aqui foram o grande cineasta e ator Eric Von Stroheirn e o gato Yogui. O gato Yogui, então, foi a maior figura do Festival. Basta dizer que fuma cigarro e usa uns óculos mefistofélicos, ou melhor, mefistofelinos. Toda a gente pára um momento para afagar Yogui; mais ainda que para a Lollobrigida, a Bovo, a Colbert, a Tcherina, a Rossi-Drago, a Anouk Aimée, a Fontaine, e outras belezas cinematográficas que andaram por aqui e que, infelizmente, não se pode afagar. 

O dono de Yogui é um rapaz que faz as sobrancelhas e passa pancake na cara. Adora que lhe afaguem o gato. Pois só assim consegue brilhar um pouco. Porque é como vos digo: A luta para brilhar é muito grande, nos halls e terrasses dos grandes hotéis europeus. Faz até com que animais tradicionalmente estranhos um ao outro, como no caso, se associem para fazer sucesso.