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A XIII Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza (Gênios e canastrões no saldo do festival...)

Última Hora , 2 de Outubro de1952

Gênios e canastrões no saldo do festival - Antonio Villar, 

o português, outro que sonha com fazer filme no brasil - 

celebrações, documentários, arte retrospectiva, surrealismo, 

etc... - Francesca Bertini, d'annunzio, duse, Leonardo da Vinci, 

celebridades vivas e mortas - basta de cinema, o repórter vai 

ver veneza, passear sob as pontes, dar alimento às pombas, 

ver hindu, francês, americano, alemão à beça 


Lido de Veneza - setembro: Falei em António Villar. Seu simpático homônimo português com dois "i" ficou meio triste com a opinião não franca, mas sincera de seus amigos portugueses e brasileiros sobre o filme espanhol O judas em que fez o papel-título e o de Cristo. 
É possível que o fato de representar Cristo e Judas ao mesmo tempo tenha subido à cabeça de Villar; depois de já ter feito Colombo, Camões, etc... O fato é que António Villar gostou do António Villar representando Cristo. Aliás, é a coisa que o filme tem, a sua interpretação sincera. O resto... francamente. 

Foi uma pena, porque Villar é um ator que não se deixou diminuir humanamente pelo sucesso. Lembro-me com saudade da noite em que passamos na terrasse do Hotel Excelsior a ouvi-lo cantar fados - e que bem canta! - e a contarmos nós anedota de português, e ele de brasileiro. Seu amor pelo Brasil é puro e dá para comover um coração tamoio. 

Villar disse-me que gostaria de dirigir um filme no Brasil, um filme, explicou-me, "sobre uma de vossas belas lendas, qualquer coisa de bem brasileiro, que terminasse numa 'spécie de apoteose', com um movimento sinfônico a Ary Barroso...". 
Eu lhe disse, naturalmente, do carinho que há por ele no Brasil. Mas quanto ao projeto do filme, não sei não... Eu gosto de Villar como ator, sei apreciar uma boa lenda brasileira e sou muito amigo de Ary para não achar que uma mistura dessa vai desmanchar completamente a mayonnaise da salada... 

O Festival de Veneza celebrou seus vinte anos este ano com várias iniciativas culturais do maior interesse. Houve um Festival do Filme Científico e do Documentário de Arte, um Festival do Filme Juvenil (ambos com prêmios), uma Mostra do Filme Surrealista e uma Retrospectiva completa do cinema italiano. 

A Retrospectiva realizava-se pela manhã, no Palazzo del Cinema. Os críticos e estudiosos iam ver a bela Francesca Bertini se esgueirar pelas paredes no auge da paixão ou desfalecer, não sem antes pôr abaixo uma cortina, ou a Pina Minichelli se agarrar a si mesma pelos cabelos no paroxismo do desespero; ou apreciar a estranha e curiosa beleza do filme La nave, dirigido por Gabrielle d'Annunzio; ou as canastrices cinematográficas da Duse; olheiras imensas, narinas palpitantes, lábios duros, narizes afilados, testa franzida, mãos crispadas, cabeleiras revoltas, corpos recurvados ao beijo, e muita, muita, muita vilania. 

Tempo curioso, precursor do atual "divismo" ou "estrelismo". Cinema um bocado ruim, afastado da realidade, todo escorado na mise en scène teatral. Mas gozado de ver. 

O Festival do Filme Científico e do Documentário de Arte apresentou coisas apenas razoáveis. Nada de primeira ordem. Vários prêmios foram distribuídos nas diferentes seções da Mostra, sendo que o Primeiro Prêmio Absoluto (os italianos gostam desse gênero de títulos) foi dado ao diretor italiano Luciano Emmer, pelo documentário Leonardo, sobre Da Vinci. 

O Festival do Filme Juvenil deu seus prêmios de acordo com as idades das crianças a que são destinadas as películas. Até 7 anos ganhou o norueguês O pequenino Frikk; de 7 a 11, o italiano Os piccoli de Podreca no Music-Hall; de 11 a 14 anos, o iugoslavo Keketz.
 
A Mostra do Filme Surrealista apresentou umas tantas coisas de interesse. A melhor foi sem dúvida o filme Dreams that Money Can Buy, de Hans Richter, que tive ocasião de ver em Los Angeles - belo e estranho, apesar de fugidio, estudo do mundo lúdico do inconsciente. 

CHEGA DE FESTIVAL 

E chega de Festival. Agora, vou pegar a barquinha da Cantareira e ver Veneza, que mal pude espiar com tanto cinema. Não vou bancar o besta não: vou dar alpiste às pombas da praça de São Marcos e tirar uma fotografia de braço duro cheio de pombas pousadas com os circunstantes me olhando. Vou dar um passeio noturno de gôndola, mas sem serenata, porque isso também é demais, e nesse passeio passar debaixo da ponte dos Suspiros, ao lado da velha cadeia, me lembrando da fuga de Scalabrino no romance de Zevaco que li quando menino. Quem sabe mesmo não ouvirei o barulho de um corpo humano amarrado num saco caindo no Canal... 

Vou esperar o relógio, ver a revoada das pombas e vou comer peixe com polenta numa trattoria, porque Veneza é isso mesmo. É preciso de início vencer o turismo, se fazer conhecido dos agentes e cicerones de rua para que eles nos deixem em paz. Porque tudo aqui trabalha para o turismo, os gondoleiros, os monumentos, as pombas - e a gente tem de seguir os canais competentes. Depois então é que deve começar a ficar gostoso. Ir, por exemplo, para o Rialto e ficar sentado vendo passar a gente, francês, hindu, alemão à beça, americano às pamparras, enquanto os vaporettos e motocafos deslizam pelas águas escuras do Canal Grande. E de vez em quando, ir ver uma igreja, porque há um mundo de arte a admirar: tanto que é preciso ir de leve senão dá gastura. Já vi muito Tintoretto e aliás preciso participar uma importantíssima descoberta que fiz sobre o grande pintor veneziano. Ele é que é o verdadeiro Pai da Aviação. Todos os outros pintores sempre punham seus anjos e figuras aladas em vôos hidrostáticos, planando calmamente. Tintoretto não. Tintoretto descobriu o vôo dirigido. Há piqués tremendos em seus quadros, loopings, fabulosas aterragens. E quando eu tiver vontade de ver a maior beleza do mundo irei rever os painéis de Carpaccio na pequena igreja de São Jorge dos Escravos, onde ele pintou a morte, o medo, o vento e delicados animaizinhos:

onde ele pintou o Leone aqui piange, o leão que chora a morte de São Jerônimo, triste e sozinho no fundo da perspectiva.