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Rastro sangrento

Última Hora , 22 de Agosto de1951

A violência física tem sido um dos pratos que Hollywood prepara com maior esmero para as platéias do mundo. Consciente de que para escapar à realidade de seus problemas magnos - o que significaria fugir ao espírito de lucros extraordinários - era preciso recorrer ao sensacionalismo e mesmo ao trauma, Hollywood criou uma série de padrões capazes de chocar as assistências menos prevenidas, como a própria platéia americana, composta, em sua grande maioria, de gente jovem e, portanto, mais indefesa. Outra não tem sido a causa da freqüência adulta ao filme americano dentro dos Estados Unidos. Mas a triste verdade é que apesar dessa queda, a mocidade do mundo inteiro prestigia o soco na cara, a tortura física, a tensão violenta das cenas do crime o tiroteio, o espancamento de mulheres. 

Para estimular esse apetite, foi criada uma rede enorme de publicações, que funcionam à maneira de hors-d'oeuvre, com relação às entrées cinematográficas que vêm depois. Temos então o comic book - a história em quadrinhos - em que os socos adquirem a força de projéteis, as armas são superarmas, os heróis super-homens, e as heroínas superboas, de peitorais superlativos e os vestidos colantes a mostrar todas as intimidades mais apetecentes do corpo feminino ultramarcadas, pernas à mostra até onde é permitido - tudo insinuando, querendo dizer libidificando. 

Um sem número de filmes têm sido feitos dentro dessa categorização. Durante um certo tempo, se um filme de cowboy não tivesse, em meio às lutas corporais, vários pontapés na cara, os produtores ficavam preocupadíssimos com as suas possibilidades financeiras. O regime de meter a mão nas mulheres, gloriosamente inaugurado por Clark Gable e logo a seguir retomado por James Cagney - que esfregou violentamente urna grapefruit no nariz de Mae Clark em GM contra o império do crime (aliás um bom filme), seria retomado com grande garbo por Humphrey Boggart, que estapeava na cara o elemento feminino de seus filmes, com uma placidez de fazer inveja a um massagista. 

De vez em quando surge, dentro do tipo, um filme razoável, ou mesmo bom. Eu não chamaria este Rastro sangrento de grande filme, mas é indubitavelmente um filme para lá de razoável. O comando de Rudolph Maté - que depois de uma gloriosa carreira como cinegrafista, passou a dirigir com mão bastante segura - emprestou-lhe essa qualidade que, malgrado o vazio do conteúdo, sem dúvida a película possui. 

Maté - responsável pela fotografia dessa obra-prima do cinema silencioso que foi A paixão de Joana d'Arc, inesquecivelmente interpretada por mme. Falconetti - soube também dirigir seus atores de modo hábil. William Holden, que a meu ver teve a melhor interpretação de Crepúsculo dos deuses, dá mais uma boa mostra do que é capaz quando bem dirigido. O trabalho de Lyle Beltger, no gangster que seqüestrava Joan Sterlind, é muito bom. Barry Fitzgerald repete o seu velho detetive irlandês, com os modismos de sempre, que se vão estereotipando, mas aos quais não faltam uma certa bossa. 

O filme é tenso, áspero, chocante. Union Station, a grande estação ferroviária de Nova York, tem o papel principal dessa película sádica, desumana e fria - a um tempo condenável e admirável pela frieza com que mostra um dos mais hediondos crimes - o kidnapping, o seqüestro de crianças com o fito de lucro. A fotografia, et pour cause, é de primeira. 

Maté terá ainda que andar um bocado para ser um diretor da altura do cameraman que foi, mas se ele continuar assim irá longe. O papel é ir ver o filme e ter os pesadelos noturnos correspondentes.