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Filme e realidade

A Vanguarda , 26 de Setembro de1953

Foi durante os trabalhos de estudo e planejamento do Instituto Nacional de Cinema, numa sala do Ministério da Educação, que Alberto Cavalcanti começou calmamente a dar impulso ao seu livro, que acaba de sair, Filme e realidade. Lembro-me muito bem de que, nos intervalos do trabalho para o qual tínhamos sido convocados - o de planejar, sob a sua orientação, a organização do Instituto -, ele reestruturava as partes já escritas na Europa, ditava novos capítulos, selecionava material fotográfico e distribuía trechos, para revisão, seja por Paulo Gastal, por José Saenz ou por mim próprio. Aliás, agradece-nos num prefácio a que deu o pomposo título de "Pórtico". Pelo que me toca, não há de quê, Alberto. Estranhei apenas você não me ter mandado um exemplar. Não é por nada, você sabe, apenas por amizade... 

Trata-se de uma obra verdadeiramente excelente, onde se encontra condensada toda uma vida dedicada ao estudo e à prática da cinematografia, compilando, com grande unidade e organicidade, estudos escritos em Ht. Bond, Anacapri, Blackheat, Copenhague, Florença, Paris, Amsterdam, São Bernardo do Campo e Rio de Janeiro, e que ganha com uma filmografia completa do realizador de Rien que les heures, En rade, Coal Face e Night Mail, organizada por Paulo Gastal. A partir do cinema silencioso, de que foi um dos mestres incontestes, um dos poucos semânticos de real classe, um descobridor insigne (e só bastasse, para afirmá-lo, o seu Rien que les heures, que fecundou todo o moderno documentário), Cavancanti repassa, num estilo despretensioso mas vivo e genuíno como ele próprio, o demi-siècle da cinematografia, não deixando intocada nenhuma questão importante. É um livro para o homem de cinema tanto quanto para o leigo, de cuja leitura se absorve uma muito pessoal interpretação dessa grande arte moderna. Os capítulos sobre décor, som, a cor, são contribuições realmente novas, expondo idéias de dentro de uma cultura plenamente realizada e à vontade. 

Cavalcanti sabe, além do mais, ilustrar seus pensamentos com exemplos risonhos e sadios, de modo que se chega ao fim do livro com uma impressão boa (e que se torna cada dia mais rara nos autores modernos) de saúde e vitalidade. 

Cavalcanti fez o livro que todos nós, seus amigos, esperávamos de seu talento. Resta agora que dê com o Canto do mar (que eu me confesso seco para ver) a primeira grande mostra brasileira de suas capacidades de realizador, para que seus ingratos patrícios parem de amolá-lo, e ele possa vencer em paz a terceira etapa de sua obra cinematográfica, depois da francesa e da inglesa, e o nome do Brasil passe sempre a acompanhar o seu nos compêndios internacionais de cinema.