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Em cada coração um pecado

A Manhã , 28 de Dezembro de1943

Sam Wood, Deus lhe acrescente, veio, em meio a tanto filme ruim, fechar o ano cinematográfico com chave de ouro. Eu sei que tenho escrito pouco sobre o que anda por aí, mas não pense o leitor que me tenha abstido por malandragem ou jejum de cinema. Vi os abacaxis um por um, e só não os descasquei como devia porque... sei lá, por cansaço, por tédio de inventar descomposturas, inutilidade de andar batendo com um dedo só, laboriosamente, nas mesmas teclas da minha brava máquina portátil contra a máquina fixa da estupidez de Hollywood. Em alguns dos filmes havia uma coisa ou outra, em The Keeper of the Flame, por exemplo, de George Cukor, com Katharine Hepburn. Mas o diretor falseou o sentido da influência orson-wellesiana, que os caminhos da história lhe apontaram, e produziu uma obra falha, inconvincente e artisticamente errada em todo o final. Dela ficou apenas a incomparável beleza de Katharine Hepburn, uma grande atriz posta a perder por essa mesma estupidez de que falávamos acima. Chetniks foi uma droga, e uma droga tomada fora de tempo, pois o enredo vem mostrar o início das atividades do general tcheco Michaelovitch, de quem se diz hoje em dia abertamente trabalhar não de guerrilheiro, mas francamente de bandido... Fugitivos do inferno, com Errol Flynn, seria uma aventura realmente emocionante, se já não estivéssemos tão blasés de lê-las mais emocionantes ainda no Gibi. O filme de Deanna Durbin, com o pobre Joseph Cotten (pra que você ficou cismado de que é mocinho, para quê, Joseph Cotten?), é formidocorropiotranssuperripipilmente chato e nhenhenhém. Pabst andou reprisado em seus piores filmes. Shanghai é uma outra besteirada contra o divórcio, que tive ocasião de ver em Paris, se me permitem. Nesse filme - como esquecê-lo? - havia um hino cantado por meninas de colégio que começava assim: "Lí-co-de-pa..." etc. As sílabas em questão não eram absolutamente nem anúncio de dentifrício, nem método de curar gagueira, nem nada. Eram - vejam só! - as primeiras sílabas do nome da tal associação colegial salvacionista: "Ligue Contre le Divorce des Parents". Chué! Por todos esses motivos, não houve mesmo nada a fazer, nem dizer, nem escrever. Mas não há ação sem reação, embora no caso os reacionários estejam no primeiro grupo. Sam Wood veio e deu com um gigantesco martelo uma boa traulitada na cabeça de todos os diretores míopes da Califórnia. Mas só agora vejo que não há mais espaço para escrever a crônica que prometi no cabeçalho. Não faz mal, fica para amanhã. Que diabo, a gente de vez em quando precisa extravasar um pouco do mau humor. Parece até aquela história do Aporeli, no velho suplemento português do seu jornal humorístico, por ocasião da chegada do aviador Sarmento de Beires. Aporeli mostrava um desenho da entrada da Guanabara. Embaixo, os seguintes dizeres: "O avião do Sarmento de Beires, quando ainda se não lhe bia..."