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Do ator

Última Hora , 29 de Setembro de1951

O ator em cinema não é um indivíduo que representa, porque ele não é um indivíduo, e ele não representa não. 

Ao parafrasear assim o paradoxo famoso de Mallarmé sobre a bailarina, a qual "n'est pas une femme qui dance, parce qu'elle n'est pas une femme, et elle ne dance pas", ocorre-me a discussão que tive anteontem com um jovem e muito inteligente amigo meu sobre o problema da ação em cinema e em teatro. O ponto de vista dele era de que há atores em cinema, tanto quanto em teatro, de acordo com o conceito clássico de ator: indivíduo que personaliza outrem que não ele próprio e é capaz de transmitir as emoções da personagem que encarna para terceiros. 

O meu ponto de vista era de que em cinema há o diretor, o qual cria artificialmente nos atores (chamemo-los assim...) de que dispõe, as condições mecânicas de ação. Em cinema ou há grandes atores de teatro, os quais possuem através da experiência os requisitos necessários para agir em qualquer circunstância - um Werner Krauss, um Emil Jannings, um Raimu, um Jouvet, um Barrault, um Orson Welles, um Sam Jaffe, um Olivier, um Ralph Richardson: que por isso mesmo são fundamentalmente atores de teatro -, ou há "rostos", personalidades físicas, que o diretor plasma circunstancialmente, e de modo descontínuo de acordo com as injunções materiais do filme que executa. Um indivíduo em cinema pode começar morrendo - representando o ato de morrer - antes de sequer ter começado a viver, e isso porque as necessidades do set, do palco de filmagem, assim o impõem. Em cinema, desde que um determinado set - uma casa, um hospital, uma rua etc. - foi construído no estúdio, a economia obriga o diretor a filmar antes de mais nada as cenas que vão ter lugar naquele set. Assim, ele pode filmar o seu ator, no mesmo dia, batendo um papo com um amigo, brigando com a polícia, fazendo uma cena de amor, morrendo etc. - o que obriga seus atores a emoções mecânicas, conseguidas descontinuamente dentro da trama normal da ação. 

A diretora Janice Loeb conseguiu uma das expressões mais dramáticas que já foi dado ver em cinema, no documentário americano The Quiet One, que ainda não foi exibido aqui, fazendo um menininho preto, seu ator principal, passar fome algum tempo, depois lhe oferecendo uma suculenta torta de maçã, e a retirando de suas mãos quando ele já pensava que era sua. As câmeras rodavam enquanto isso, e tudo o que miss Loeb teve que fazer mais tarde foi cortar as seções de celulóide que lhe interessavam, colá-las e... vemos um menino abandonado que, morto de saudades da mãe, vai visitá-la na casa onde ela vive com outro homem. Ela lhe abre a porta e vê o rostinho faminto de carinho que olha para ela (o pedaço em que Janice Loeb oferece a torta de maçã). Depois vem a voz caceteada da mulher mandando no menino - e ao ouvir a voz neutra de sua mãe o semblante da criança se fecha, e suas pupilas se dilatam na treva de amor que o rodeia (o pedaço em que miss Loeb, depois de oferecer o doce, o retira de ante os olhos gulosos do menino). Assim, conseguiu ela, artificialmente, uma das maiores expressões de amor e angústia que existem em qualquer arte interpretativa. Todo mundo diz, ao ver a cena: "Mas esse menino é um gênio!" Não. O menino dispunha apenas de uma carinha triste e sensível. A bossa é de Janice Loeb, que arrancou dessa cara exatamente as expressões que queria graças a um pouco de psicologia e uma simples torta de maçã.
 
Ação em teatro e cinema são coisas muito diversas. E aí está para prová-lo a decadência sempre crescente do cinema americano, desde que o star system, o sistema de estrelato, impôs-se comercialmente ao trabalho diretorial. Hoje em dia e com muito poucas exceções, o diretor apenas coordena no palco de filmagem os múltiplos labores que resultam num filme: tudo lhe chega de antemão mastigado, e os atores, cuja fama traduz-se em cifras espantosas, são, mais que atores, susceptibilidades nem sempre convém ferir. O espírito de equipe foi à garra. 

O ator em teatro encarna a sua personagem de um modo geralmente contínuo no tempo, e sob o estímulo de uma platéia com que se comunica diretamente através de um veículo instantâneo - a linguagem. Em cinema o ator se comunica indiretamente, e descontinuamente, e sua linguagem não é essencial no processo de comunicação com o público. Ela pode ser dublada artificialmente, gravada numa fita sonora à parte, a qual é posteriormente sincronizada com a fita puramente cinematográfica. É verdade que hoje em dia a mobilidade dos microfones, que podem melhor acompanhar o ator em sua movimentação, veio estreitar muito mais esses laços de comunicação entre o ator cinematográfico e o público. Mas o processo resta indireto, e mecânico, e é fundamentalmente diverso do tipo de comunicação no teatro. 

E tenho dito.