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Considerações materiais

A Manhã , 13 de Novembro de1941

O ideal de fazer cinema é um sonho que se paga caro. O material é dos mais custosos, e o cinema, como a pintura, e a escultura, é uma arte substanciosa, visto que ela exige um aparato para se realizar. A poesia, o romance, a arquitetura, a música, só pedem papel e lápis. Na ausência disso um pedaço de carvão serviria, e uma parede. Não será, por exemplo, a falta de papel e lápis que irá impedir Anchieta, no seu desterro voluntário, de escrever o seu poema em louvor da Virgem. A santa e bruca areia, e uma varinha... Vá-se agora fazer cinema com isso! 

Na verdade essas artes substanciais têm seus pontos. Eu, pessoalmente, que funciono com papel e lápis, tenho uma inveja danada de pintor. É o meu fraco. Deve ser tão distraído, afora o que há de mais grave na arte, se ficar misturando cores, fazendo cozinha artística, como eu via Portinari fazer... Não é à toa que tanto literato agora deu para pintar. Não é difícil sentir o processo psicológico que os leva a essa trabalhosa arte. De fato, quem sabe se um dia, de tanta mistura de cores não vai sair um rosa de nova espécie, como aquele descoberto nos poentes por Prudente de Moraes, neto?
 
Qual o quê? Não sai, não... Mas a coisa não é boa só por isso. Há uma substância de ordem doméstica nessas artes, que prende o homem à sua casa, ao seu ateliê, ao seu barro, à sua tela, às suas latas de tinta. Só essa coisa de pôr avental para trabalhar, como fazem alguns, deve ser formidável. No fundo são artes científicas, que pedem um determinado conhecimento de ordem físico-química, médico - anatômica. Poesia é uma desgraça. Papel e lápis. Bloco, almaço, papel de embrulho, mas papel, sempre papel. E lápis, lápis que é preciso apontar com gilete, único "trabalho" material dessa arte de colher nuvens, como diz Cecília Meireles. Não, no fundo há uma injustiça, com os poetas. O músico ainda tem seu piano. O arquiteto ainda tem a obra cujo crescimento é preciso vigiar. O poeta só tem seu livro, em geral um magro volume com as páginas mais brancas do que pretas, que lhe dá uma saudade de derrubar árvores, lavrar campos, britar pedras.
 
Agora, os infortúnios têm suas vantagens. Cinema, por exemplo, custa um dinheiro surdo. Capital de poeta é água fria. Pode um indivíduo se sentir cineasta como quiser. Em lhe faltando o de cujus, nada feito, como se diz nesta terra.