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Carta a Marta, com o perdão da rima

A Manhã , 25 de Junho de1943

Jovem Marta (porque você é uma jovem possivelmente universitária, não é?), sua cartinha foi uma das melhores alegrias que tenho tido nesses últimos tempos. Desde o meu finado debate sobre cinema silencioso e sonoro que ninguém mais me escrevia: e naquele tempo eram cartas e cartas de todos os cantos do Brasil. Poderia também dar-se de ser você uma conhecida minha e estar fazendo essa brincadeira de me escrever com um nome suposto; mas graças a Deus eu sou um homem de imaginação. Para falar verdade, Marta, eu creio que Marta seja você mesmo: menina de meia altura, castanha e talvez aluna da faculdade de filosofia, mas com uma grande vocação para viver. Você me pergunta, jovem Marta, coisas que só o Apocalipse pode responder. Diz você: 

Fui ver, seguindo o seu conselho, Sangue de pantera. Achei o filme notável no que ele tem de intensa sugestão pela imagem. Desejaria, entretanto, saber se entendi o sentido do filme: vi, naquela metamorfose da mulher em pantera, um símbolo - a de formação da personalidade em conseqüência da prática ou do desejo de praticar o mal. Será isso? Mas não consegui entender por que, tendo vontade de ser boa, de ser normal, a mulher pantera não o conseguia. Por quê? E por que a morte do psiquiatra? Quererá aquilo significar a impossibilidade de conhecer o homem, de penetrar o recesso de sua consciência e, portanto, o fracasso certo de quem tal tentar? Explique-me essas coisas, que lhe ficarei ainda mais grata do que já sou. 

Você sabe que você é o maior amor do mundo, Marta? Achei sua carta tão engraçadinha, sabe, e tão séria! Você já está mesmo com todas essas coisas na cabeça, menininha? Aposto que você andou lendo Nietzsche ultimamente, não andou? Olhe aqui: eu acho que você compreendeu muito bem o sentido real do filme, o seu transcendentalismo. A questão "símbolo" que você coloca não me parece importante, sem embargo de ser muito justa e inteligente como interpretação. Eu vejo o filme como uma coisa absolutamente fatal em seu mistério. Quando a mulher se transforma em pantera, não há para mim nenhum símbolo ali, porquanto possa na realidade haver mil. É a revelação da Besta Mística que ele me insinua, com uma sugestão apocalíptica. Note que eu não sou católico, nem penso muito nessas coisas. Mas o que eu vejo naquela metamorfose é a realidade viva da Besta Mística, gerada do aparecimento da Mulher vestida de Sol que trazia no ventre um filho homem: a Besta Mística assassina de cordeiros, vista sob a forma aproximada de um leopardo e que tinha uma das sete cabeças feridas de morte. Não lhe saberia explicar a coisa de outra maneira. A morte do psiquiatra? Aceito sua interpretação. São para mim duas faces da Fera. O psiquiatra participa da natureza da Pantera, como da Besta participava a segunda do Apocalipse, a de pequenos cornos de cordeiro, mas que falava como um dragão e que tinha o poder de exercitar o mal à grande, a que sobrevivera à ferida pela espada. Eis aí, Marta. Talvez lhe desaponte tanta vagueza num crítico. Mas só assim me parece importante a mensagem de fé que o filme traz: de que a Besta será vencida pelo sangue do Cordeiro. Mensagem tão especialmente grande para a hora que vivemos. Dê uma espiada no Apocalipse, e você verá. E se você não tiver medo de penetrar o recesso de uma consciência de homem, me escreva outra cartinha dizendo se entendeu esta resposta. Mas que não me saia você uma mulher-pantera. Palavra de honra, só de pensar nisso fico todo arrepiado. Entrementes queira-me bem. Muito mais grato lhe sou eu.