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Carta aberta a Marlene Dietrich

Última Hora , 22 de Fevereiro de1952

(A propósito de na estrada do céu) 

Caríssima Marlene 
Desculpe eu trazer novamente à baila a minha antiga paixão por você agora que você está avó; e eu com uns dez anos mais, também posso estar avô. Foi tudo um caso de mocidade, que já passou, e de que só resta, como diria o poeta Carlos Drummond, "uma fotografia na parede". Mas a coisa, minha muito querida, é que sempre fica algo pendente desses casos de mocidade, sobretudo quando se era como eu fui tarado por você. Eu vi seus filmes - especialmente O Anjo Azul e Marrocos - nem sei mais quantas vezes. 

Ontem fui ver esse seu novo filme em cartaz, Na estrada do céu. Achei você como sempre linda apesar dos seus cinqüenta. Você é um prodígio de beleza, Marlene Dietrich, e por isso os céus sejam louvados. Nem uma ruga no seu rosto. A mesma velha classe física. As mesmas pernas. 

Mas como é que você deixa meterem você num filme daqueles, Marlene? Antigamente você discriminava mais, não pegava qualquer abacaxi não. Antigamente você exigia bons diretores, e você os teve por muito tempo. Basta falar em Joseph von Sternberg, a quem você deve muito e que por sua vez não lhe deve menos. Você foi a sensação do mundo e eu me lembro que por um tempo fanáticos de cinema, Otávio de Melo e José Arthur da Frota Moreira e eu só admitimos uma parede para você: Greta Garbo. E eu mesmo, a falar verdade, nem isso. Para mim você era absoluta. Esse filme que você fez é chato. James Stewart está um perfeito bocó, na pele de um cientista distraído. Tudo tão exagerado, tão falso. Aquilo é o tipo da ofensa à classe - uma classe profundamente respeitável de homens que põem, quase sempre gratuitamente, o seu cérebro a funcionar em benefício da humanidade. Cientistas não são aquilo, é o tipo da coisa que Hollywood pensa que um cientista é, no fundo desrespeitando um pouco, fazendo um pouco de caçoada. Porque a verdade é que para Hollywood, tudo o que não seja comum, tudo o que cheira a gênio ou simplesmente a inteligência constitui matéria controversa - e matéria controversa não é bom assunto para a bilheteria. 

Você devia dar um duro nos seus produtores, Marlene. Assim você vai para a cuíca direitinho - coisa que, eu lhe confesso, me cortaria o coração. A minha vontade é ver você trabalhando por muitos anos mais. Não importa a que preço. Nem que seja preciso fazer muita cirurgia plástica, esticar a pele, tirar daqui para botar ali qualquer negócio. Eu acho que o papel é você tocar para frente, porque você ainda é, avó e tudo, uma das coisas mais bonitas que há no mundo. Hemingway e eu achamos isso. 

Desculpe, hein, minha neguinha. Eu preferia muito não lhe dizer nada disso. Mas eu se fosse você, a próxima vez que lhe quiserem impingir um argumento desses, ao lado de um paspalhão feito James Stewart, eu virava para o produtor, passava os dedos na boca e fazia bulubulu - bulubulu...