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Abstenção de cinema

A Manhã , 21 de Fevereiro de1943

Ando cumprindo mal meus deveres de cronista. Não está certo, não, Vinicius de Moraes. O público te paga para escrever, e você, em vez, fica a andar de bicicleta com o Rubem Braga pelas praias do Leblon ou a roer a sua solidão nos bares de Copacabana, ingerindo chopes, além de tudo uma coisa que não pode fazer bem à sua colite. Você vai num mau caminho, meu rapaz. Você devia era entrar no cinema e ir ver Shirley Temple - mas como dói! Anteontem, passando em frente ao Rian, você teve mentalmente o seguinte comentário diante do cartaz: Casei-me com um nazista. "Quem mandou...". Nada disso está certo. Você é um rapaz de responsabilidade, com dois filhos, uma bela carreira na sua frente, talvez até com mais um ou dois livros a escrever. Você devia acordar mais cedo, olhar a aurora nascer, encher os pulmões da salsa brisa atlântica, fazer uma hora de ginástica, tomar um banho frio e escrever um poema sobre a eugenia. Mas, não. Há uma semana você não vai ao cinema. Olhe que você com essa sua abstenção pode ter feito mal a algum fiel leitor seu - esse desconhecido… - que, por incauto, e sem a sua rija orientação cinematográfica, se deixasse seduzir pela burrice dos cartazes, e... mais uma alma no inferno do cinema... 

O médico em você se rebela contra essas surtidas dos monstros, Vinicius de Moraes. Ouve a voz que te conclama ao sereno e imparcial cumprimento do dever. Fecha os olhos, vai ao cinema. Ingere Shirley Temple e outras adolescências geniais como ingerias o teu óleo de rícino na infância, ministrado pela mão mussoliniana de tua tia. O público assim o quer. Deixa de hipocondrias. Sê cronista. Vence a sedução da máquina e o canto de sereia de Rubem Braga. Atira-te à confecção de pequenas jóias de bom gosto cinematográfico, pipocando em conceitos do mais alto interesse artístico, e larga essa mania de querer andar sem mãos e quem sabe - ó sonho! - de costas para a frente, na bicicleta. Ainda domingo passado pagaste quarenta cruzeiros ao garagista. Estás louco, rapaz, com o quilo de carne a três cruzeiros e sessenta centavos? 

Não está certo, não, Vinicius de Moraes. É preciso comer cenouras, tomar pelo menos meio litro de leite por dia - e não uma bagaceirazinha ou outra, está ouvindo? -, ir ao cinema e depois meditar uma boa crônica ante um chá com waffle and mapple numa das cadeiras da Americana, entre senhoras abastadas - e não chope, está ouvindo?, que é uma coisa que encharca o estômago e não nutre nada... 

(Mas, afinal de contas, esse negócio de cevada é ou não é batata?)