voltarPoesias

O mágico

Rio de Janeiro , 1938

Diante do mágico a multidão boquiaberta se esquece. Não há mais lugar na Grande Praça: as ruas adjacentes se cobrem de uma negra onda humana. Em todas as casas a curiosidade do mistério abriu todas as janelas. A espantosa fachada da Catedral se apinha de garotos acrobatas que se penduram nos relevos como anjos. É talvez Paris do Terror, porque os velhos pardieiros como que se inclinam para o espetáculo incessante e na porta das hospedarias há velhas tabuletas pendentes, mas também pode ser uma vila alemã, onde as campainhas das lojas tilintam alegremente, ou mesmo o Rio do tempo dos Vice-Reis, com os seus Capitães-Mores traficando em suas redes e fitando duramente o artista.

O mágico está sobre o antigo pelourinho ou forca ou guilhotina por onde muitas gerações passaram.

As abas da sua casaca vão ao vento — é uma negra andorinha saltitante! As brancas mãos se misturam em ondulantes movimentos de dança.

É de tarde, hora do trabalho. Na primeira fila estão os senhores e na última os escravos do dever. Os senhores procuram adivinhar, os escravos procuram rir. O mágico se diverte com a multidão, a multidão se diverte com o mágico. Um filósofo e um dançarino perdidos confundem a multidão com o mágico e aguardam.

Todos se divertem à sua maneira.

*

Silêncio, o mágico fala, todos escutam! “Ahora, presentaré el famoso entretenimiento de las palomas.” A dama oriental faz uma pirueta ágil e mostra ao público a cartola milagrosa. O mágico faz passes, cobre a cartola com um lenço vermelho de seda. “Un dos y...!” voam pombas brancas para o céu de safira. A multidão olha para cima, as mãos aparando o sol. O movimento prossegue. Toda a praça, toda a rua, toda a cidade olha para cima, o subúrbio olha para cima, os camponeses olham para cima. “O que estará para acontecer? Dizem que um tufão caminha do levante!” Acendem-se ícones nas isbás da estepe russa, fazem-se procissões em Portugal. O chefe guerreiro da tribo vê o sinal da guerra no céu, rugem os trocanos. O mágico joga a cartola para a multidão, que aplaude. O poeta apanha a cartola e recolhe nela o encantamento que se processou. As pombas invisíveis voltam, o poeta as contempla. Só elas são o Íntimo da Vida.

*

E o tufão cai de súbito, vindo do Levante. Os garotos escorrem pelas colunas, formigam pelas escadarias, escondem-se nos nichos. O povo se escoa como uma água lodosa pelas portas das casas que abrem e fecham. A um gesto de guignol todas as janelas se retraem e após um minuto de rumor intenso desce uma eternidade de silêncio. Uma procelária passando em busca do mar só vê da cidade as suas torres acima do grande nevoeiro. Os rios rugem, as pontes desabam, nas sarjetas boiam cadáveres de crianças ciganas. O dilúvio leva a música do mágico, leva as pinturas do mágico, leva as bonecas do mágico, só não leva o mágico na torrente.
O poeta sobe ao palanque, castiga o mágico, possui a mulher do mágico, apresenta ao alto a cabeça e o coração, onde surgem e desaparecem pombas brancas e onde a realidade efêmera floresce no mistério perpétuo.
Mágico do inescrutável, o poeta aguarda o raio de Deus.

Livros com essa poesia