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Cemitério marinho

Rio de Janeiro , 2004

Tal como anjos em decúbito 
A conversar com o céu baixinho 
Existem cerca de cem túmulos 
Num lindo cemiteriozinho 
Que eu, a passeio, descobri 
Um dia em Sidi Bou Said. 

Mal defendidos por uns muros 
Erguidos ao sabor da morte 
Eu nunca vi mortos tão puros 
Mortos assim com tanta sorte 
As lajes de cal como túnicas 
Brancas, e árabes; não púnicas. 

Sim, porque cemiteriozinho 
Nunca se viu assim tão árabe 
Feito o beduíno que é sozinho 
Ante o deserto que lhe cabe 
E mudo em face do horizonte 
Sem uma sombra que o confronte. 

Pequenos paralelepípedos 
Fendidos uns, conforme o sexo 
Eis suas lápides: antípodas 
Das que se vêem num cemitério 
De gente do nosso pigmento: 
Os nossos mortos de cimento. 

Quem se deixar de tarde ali 
Isento de mágoa ou conflito 
A olhar o mar (sem Valéry!) 
Como um espelho de infinito 
E o céu como um anti-recôncavo: 
Como o convexo de um côncavo 

Acabará (comigo deu-se!) 
Ouvindo os mortos cochicharem 
Alegremente, eles e Deus 
Mas não o nosso: o Deus dos árabes 
Que não fez Sidi Bou Said 
Para os prazeres de André Gide 

Mas sim porque a vida segue 
E o tempo pára, e a morte é um canto 
Porque morrer é coisa alegre 
Para quem vive e sofre tanto 
Como no cemiteriozinho, ali 
Ao céu de Sidi Bou Said. 


Sidi Bou Said, outubro de 1963 
Florença, novembro de 1963

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