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Poema de Auteil

Rio de Janeiro , 1959

A coisa não é bem essa. 
Não há nenhuma razão no mundo (ou talvez só tu, Tristeza!) 
Para eu estar andando nesse meio-dia por essa rua estrangeira com o nome de um pintor estrangeiro. 
Eu devia estar andando numa rua chamada Travessa Di Cavalcanti 
No Alto da Tijuca, ou melhor na Gávea, ou melhor ainda, no lado de dentro de Ipanema: 
E não vai nisso nenhum verde-amarelismo. De verde quereria apenas um colo de morro e de amarelo um pé de acácias repontando de um quintal entre telhados. 
Deveria vir de algum lugar 
Um dedilhar de menina estudando piano ou o assovio de um ciclista 
Trauteando um samba de Antônio Maria. Deveria haver 
Um silêncio pungente cortado apenas 
Por um canto de cigarra, bruscamente interrompido 
E o ruído de um ônibus varando como um desvairado uma preferencial vizinha. 
Deveria súbito 
Fazer-se ouvir num apartamento térreo próximo 
Uma fresca descarga de latrina abrindo um frio vórtice na espessura irremediável do mormaço 
Enquanto ao longe 
O vulto de uma banhista (que tristeza sem fim voltar da praia!) 
Atravessaria lentamente a rua arrastando um guarda-sol vermelho. 
Ah, que vontade de chorar me subiria! 
Que vontade de morrer, de me diluir em lágrimas 
Entre uns seios suados de mulher! Que vontade 
De ser menino, em vão, me subiria 
Numa praia luminosa e sem fim, a buscar o não-sei-quê 
Da infância, que faz correr correr correr... 
Deveria haver também um rato morto na sarjeta, um odor de bogaris 
E um cheiro de peixe fritando. Deveria 
Haver muito calor, que uma sub-reptícia 
Brisa viria suavizar fazendo festa na axila. 
Deveria haver em mim um vago desejo de mulher e ao mesmo tempo 
De espaciar-me. Relógios deveriam bater 
Alternadamente como bons relógios nunca certos. 
Eu poderia estar voltando de, ou indo para: não teria a menor importância. 
O importante seria saber que eu estava presente 
A um momento sem história, defendido embora 
Por muros, casas e ruas (e sons, especialmente 
Esses que fizeram dizer a um locutor novato, numa homenagem póstuma: "Acabaram de ouvir um minuto de silêncio…") 
Capazes de testemunhar por mim em minha imensa 
E inútil poesia. 
Eu deveria estar sem saber bem para onde ir: se para a casa materna 
E seus encantados recantos, ou se para o apartamento do meu velho Braga 
De onde me poria a telefonar, à Amiga e às amigas 
A convocá-las para virem beber conosco, virem todas 
Beber e conversar conosco e passear diante de nossos olhos gratos 
A graça e nostalgia com que povoam a nossa infinita solidão.

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