volverMovie

Aliás, o Festival Internacional de Veneza refletiu... (s/ título)

Aliás, o Festival Internacional de Veneza refletiu por certo tempo esse espírito. Iniciado muito bem em 1932, com uma simples classificação onde foram premiados, entre outros, o ator Fredric March, e os diretores René Clair e Nikolai Ekk, deu no ano seguinte o prêmio para o melhor filme estrangeiro a Man of Aran, do grande Robert Flaherty. Até aí está ótimo. Já em 1935 - com o aumento de prestígio da Mostra - era premiado o impressionante e infame O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, filme de propaganda da violência hitlerista. Em 1936 instituía-se a Copa Mussollini e seu vencedor foi justamente Augusto Genina, com o Esquadrão Branco. Em 1937 Carmine Gallone levava o prêmio do melhor filme italiano com o seu Cipião o Africano, e Sentinela de Bronze, de Marcellini, era premiado como o melhor filme sobre motivo colonial. Em 1938, ou seja, um ano antes da guerra, venciam no Festival o filme alemão Olympia - aliás, o único grande filme do nazismo, realizado por Leni Riefenstahl sobre as Olimpíadas de Berlim - e o italiano Luciano Serra pilota. Já por essa ocasião quase que só eram premiados filmes estrangeiros sobre assuntos mórbidos ou intimistas. Em 1939, ou seja, o ano da guerra, o Abuna Messias de Goffredo Atessandrini ganhava o prêmio do melhor filme italiano, nada sendo atribuído a filmes estrangeiros. Durante os primeiros três anos da guerra - ou seja 1940,1941 e 1942 - são premiados os italianos O Ataque ao Alcazar, de Genina, Coroa de Ferro, de Alessandro Blassetti, e Bengasi, também de Genina; e os alemães Der Postmeister, de Ucicky, Olm Kürger, de Hans Steinhoff, e Der Grosse Kõenig, de Veit Halan. Em 1942 aparece na mostra de Veneza um jovem italiano que, com um filme extremamente bem-feito sobre a famosa história de Pushkin, O Tiro de Pistola, não ganha nenhum prêmio. Seu nome: Renato Castellani. 

Em todo esse período, os nomes do cinema italiano quase não variam: Gallone, Guido Brignone, Genina, Alessandrini, Romolo Marcellini, Camillo Mastrocinque, Mario Camerini, Biasetti, Mario Mattoti. Alguns desses homens, é claro, se recuperaram inteiramente da contratação fascista, e entre eles cumpre acentuar os nomes de Genina, Blasetti e Camerini. Curiosamente, o ano de 1941 marca o aparecimento de um diretor que viria posteriormente a ser um marco no neo-realismo italiano: Roberto Rossellini, com o seu La Nave Bianca. 

Já em 1946, a guerra ganha, a coisa muda muito de figura. A Mostra veneziana premia The Southerner, de Jean Renoir, Les Enfants du Paradis, de Marcel Carné, Os Carrascos Também Morrem, de Fritz Lang, o Henrique V de Lawrence Olivier; e até um filme soviético, de Mikhail Ciaurelli, merece reconhecimento. Daí por diante Veneza se abre a todos os países, até 1948. Em 1949 a Guerra Fria passa a refletir-se novamente no certame internacional do Adriático. 

Tudo isso vale para provar o terrível efeito do fascismo sobre os criadores italianos de cinema. Quando Rossellini rompe as amarras, com o seu notável Roma, cidade aberta, a realização dos novos realistas começa a se fazer valer na Mostra de Veneza. Em 1947 Caccia Tragica, de De Sanctis, é distinguido com o Prêmio da Presidência do Conselho de Ministros; Sob o sol de Roma, de Castellani, ganha o mesmo prêmio em 1948. Em 1949 Cielo Sulla Palude, do novo Genina, é honrado com igual distinção. A co-produção Domani è Troppo Tardi, de Leonide Moguy, leva a palma em 1950, e em 1951 Pietro Germi vê vencer o seu La Città se Defende. Os filmes italianos são também distinguidos em festivais estrangeiros: De Sica, Lattuada e Casteliani vêem obras suas premiadas em Punta del Este, Cannes, Berlim. 

É possível que esta enumeração esteja caceteando a alguns, mas ela vale para provar que não é possível ao artista trabalhar sob qualquer opressão, a não ser que tenha carta branca para fazê-lo, o que é difícil. O grande surto do cinema italiano, que veio colocá-lo ao lado dos melhores do mundo, e arrastou toda a crítica internacional para a discussão do fenômeno que representou, no fundo nada mais foi que um tremendo movimento de libertação. Rompidas as cadeias, fez-se a vida. Aí estão seus maiores homens: Visconti, Rossellini, De Sica, Lattuada, Zampa, Germi, Castellani, De Sanctis, Antonioni - para prová-lo. Fizeram e estão fazendo o seu cinema. Hoje, eu creio, com a crescente comercialização do cinema peninsular, muitos deles terão perdido o impulso primitivo, diante da invasão das alucinantes Pampaninis, Rossi-Dragos, Del Poggios; Bosés, Ruffos, Bertis, todas portadoras de fabulosas lollobrigidas, moças que entraram de peito pelo cinema italiano adentro deixando os visores das câmeras absolutamente estáticos sobre as suas esplêndidas mocidades. Eu que conheci algumas, confesso-vos que poucas vezes vi nada no mundo tão belo quanto a linha do horizonte feminino do cinema italiano. Mas… serão elas neo-realismo? Neotaradismo? 

O que parece evidente é que, cansados de pintar os dramas de sua pátria, a maioria dos diretores neo-realistas resolveu repousar a cabeça em berço esplêndido. Rossellini inclusive, cuja preocupação maior parece antes dar lindos filhos a Ingrid Bergman que bons filmes à Itália. Resta, no entanto, a esperança de alguns, à frente dos quais coloco Luchino Visconti, cujo filme Ozzezione ireis ver dentro de poucos minutos. Visconti é realmente um criador notável, e embora este filme não seja considerado o seu melhor, já há nele essa notável qualidade funcional, esse respeito formal ao conteúdo, essa crispação estilística sem a qual nenhum artista pode permanecer. Longe de ser um formalista - sendo, pelo contrário, o que hoje em dia se chama um artista engagé - Visconti é para mim o maior diretor italiano vivo. Os seus La Terra Trema e Bellissima são obras maiores de cinematografia, apesar de não parecerem dar senão uma leve amostra de suas reais capacidades.
 
Resta também Castellani, um diretor vigoroso, cuja força vital se traduz em contínuos cantos de esperança e fé nos destinos da mocidade de sua pátria. De Sica pode ser sempre uma surpresa, apesar do boicote que lhe faz a indústria local, sob o pretexto de que seus filmes não se vendem. O próprio Rossellini, cansado de ver na câmera o rosto pasteurizado de sua mulher, pode muito bem, de repente, voltar aos bons tempos de Roma e de Paisà. Mas uma coisa parece certa: o neo-realismo acabou com tal. E acabou por isso que não é nem nunca foi uma escola de cinema. Foi apenas uma atmosfera.