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Alberto Cavalcanti e o I.N.C. (I)

Última Hora , 27 of Julio of 1951

Embora nossa amizade date apenas de cinco meses - uma boa amizade, que me acrescenta e honra em muito -, eu conheço Alberto Cavalcanti desde que me conheço; de início através de seus filmes, vistos em muitas instâncias nos vários cineclubes de que fui sócio na Europa e nos Estados Unidos, e depois, graças à minha correspondência com Marie Seton, a crítica inglesa, biógrafa de Einstein que chegou a me descrever em cartas, com a maior minúcia, toda a tralha brasileira com que o diretor patrício mantinha o Brasil vivo no interior do seu apartamento em Londres. 

De tal modo que, quando fui vê-lo em São Paulo, em sua então casa no estúdio da Vera Cruz (isso antes da famosa ursada que lhe fez a Companhia paulista), reconheci imediatamente vários dos objetos contados por essa nossa amiga comum.
 
O que mais me chamou a atenção, de saída, em Cavalcanti, quando tivemos o nosso primeiro papo, foi que o achei muito parecido com Clodoaldo Pereira da Silva Moraes - uma apoteose do homem recém-falecido, e que durante 36 anos teve a desdita de ser meu pai. Não há a menor fita ao dizer eu isso. Não quero para o meu pior inimigo um filho como eu. O fato é que reconheci em Cavalcanti o mesmo jeito de falar, por cima dos óculos, a mesma discrição, o mesmo entusiasmo pela vida, a mesma grande e irreprimível generosidade, o mesmo gosto das coisas simples e orgânicas. Toda a minha dificuldade para fazer grandes, realmente grandes amigos - a que eu peço não muitas qualidades, mas muitos estados e condições - caíram quase que de saída diante de Cavalcanti. A verdade é que ele já era muito meu do peito, através de seus filmes sempre tão carregados de realidade e humano - e ter fé nele foi questão apenas de meia hora. Ele falou, eu escutei, depois eu falei, ele escutou. Como eu sou um homem que fala muito pouco, eu gosto que me escutem, quando eu falo. 

Naquela tarde o mundo me pareceu melhor. Ali estava um homem after my own heart, como se diz na língua inglesa. Um do meu lado esquerdo. 

A única coisa que por assim dizer me chocou em Cavalcanti foi a qualidade de sua sinceridade. Eu estou em geral habituado a sujeitos muito malandros, embora a malandragem me pareça uma forma precária de afirmação individual. O malandro cedo ou tarde se estrepa. Os homens, como Cavalcanti, fundamentalmente espontâneos, e de fundo ingênuos, são em geral capazes de passar para trás qualquer malandro em matéria de conhecimento intuitivo das situações. Cavalcanti viria prová-lo, pouco a pouco, ao longo de uma das mais impressionantes e desconhecidas batalhas que já me foi dado ver. São alguns aspectos dessa batalha em torno do Instituto Nacional de Cinema - que pretendo trazer ao público nesses próximos dias. Ele, público, e a administração do jornal que me perdoem, com relação às crônicas dos filmes em cartaz. Eu sei que é minha obrigação trazer aos leitores a crítica diária do que vai pelas nossas telas. Mas o assunto é bastante importante para que eu me permita essa digressão casual.