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Duas gerações de intelectuais

A Manhã , 13 of August of 1942

Não será o interesse pelo cinema como arte um sinal da profunda diferença que marca as duas gerações de intelectuais hoje existentes no Brasil? 

Lembra-me que a coisa ocorreu-me a primeira vez quando, uma noite em Copacabana, conversava com Pedro Nava e Rodrigo M.F. de Andrade. Rodrigo falava sobre a sua geração, apontando-lhe os valores e os erros, com aquela precisão e clareza verbal que fazem dele o mais perfeito tricheur de todas as caças que lhe levam seus amigos mais sinceros. Porque nunca a nenhum de nós passou fazer nada de importante sem antes consultar Rodrigo e ouvi-lo a respeito. Manuel Bandeira disse dele, num poeminha onomático que é uma jóia, a coisa de mais verdadeiro e mais extremo, chamando-o: "o amigo perfeito". Rodrigo é isso: o mais digno, fiel e fatal de todos os amigos. 

Sua geração não é uma geração de visuais. No fundo são homens que se caceteiam com cinema, que têm mais o que fazer, gente bastante desencantada e trancada em si mesma, ou que - seres fundamentalmente líricos - só gostam de cinema em termos de poesia ou de romance, coisa que revela melhor que nenhuma outra o desconhecimento essencial, o desinteresse desse grupo viril, áspero e velhaco de brasileiros pela arte da imagem em movimento.
 
É realmente curioso. Um por um, podemos passá-los todos, invariantemente. Meu primo Prudente de Moraes, neto, a quem sucedi na antiga Censura Cinematográfica, como representante do Ministério da Educação, não é um cinemático. Em cinema, ama a poesia, como em tudo. É o tipo do fã bissexto, como o poeta nele (apenas, o poeta: que grande!). Imagine-se um fã que não entra num cinema porque Bette Davis causa-lhe um desagrado alérgico... 

Rodrigo é outro que praticamente não vai a cinema. Nada há nele dessa fatalidade de fã que há num Otávio de Faria ou num Plínio Sussekind. Essa falta de necessidade do cinema à noite, vamos encontrá-la também em Augusto Meyer ou em Carlos Drummond de Andrade. Seu interesse é fortuito como um eco de outros interesses. Não há neles vocação. São homens para dentro, parados sobre um cinema íntimo, sem mais paciência para essa espécie de extroversão que o cinema pede. Serão, no máximo, poetas que vão ao cinema. E têm essa marca do mau fã: são capazes de sair em meio a um filme, quem sabe de cochilar na cadeira?... 

Ribeiro Couto foi, até certo ponto, uma revelação para mim, com o interesse manifestado nesse debate que passou. Me parece, no entanto, que a qualidade do gosto de Ribeiro pelo cinema é de pura evasão lírica, Quanto a meu amigo e médico Pedro Nava, este é um antivisual, um acinemático completo. Tudo em Nava é complexo poético. Ele gosta, nos filmes, justamente do que eles têm de menos cinema, de mais anedótico, inteligente, rabelaisiano. 

E assim por diante. Vejam o poeta e escultor Dante Milano: onde o cinema naquele lirismo? Lúcio Costa, por exemplo: um artista completo, um homem cuja vida é uma força e um exemplo, ser digno e íntimo, a um tempo esquivo e fraterno. Que é do cinema naquele visual? Portinari: outro. Um grande visual sem cinema. Joaquim Cardoso, dos homens dessa geração, é talvez o que tem um conhecimento mais intuitivo de arte. Cardoso conhece cinema. O mestre Gilberto Freyre não é um cinemático de todo. Nem a escola do Recife não é cinemática tampouco. Nem os romancistas do Norte não são cinemáticos tampouco. Onde o cinema num Graciliano, num José Lins, num Amando Fontes? Rachel de Queiroz é a única que vi se interessar por cinema com um certo movimento de curiosidade pela arte em si: mas Rachel é da minha geração (palavra antipática, geração, mas não há outra). 

Há, entre eles, dois ou três homens que realmente sentem e conhecem cinema: Murilo Mendes e Aníbal Machado, especialmente, sobretudo o segundo que, esse, estuda e é bom fã. Aníbal Machado me parece a grande exceção. 

Por isso, acho fatal que a cinematografia brasileira, se deve haver uma, nasça dos intelectuais da geração de Otávio de Faria e não da de Alceu Amoroso Lima. Não creio que nenhum desses homens de que falei pudesse fazer um bom roteiro, construir direito uma continuidade ou dar ritmo cinematográfico a uma sucessão de imagens. Olhariam no olho da câmera com uma curiosidade bonne enfant, como quem quer ver a lua atrás de um periscópio. E isso vem muito da influência da época em que melhor viveram e criaram, da sua juventude boêmia e sem cinema, do seu regionalismo, do seu amor à forma, à discrição, à qualidade anedótica da palavra. Há essa separação profunda entre a geração deles e a minha. Mas isso não deixa lugar a nenhuma separação, pelo menos do meu lado. Sou grandemente ligado à afeição de tantos desses grandes irmãos mais velhos.