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Coisas que incomodam

Última Hora , 26 of June of 1951

Vi ontem, no Palácio, um complemento nacional, Coisas que incomodam... que se deixa a desejar do ponto de vista estritamente técnico, revela no seu cinegrafista um bom senso de cinema e uma certa qualidade dramática que muito me impressionaram. Parabéns à Cinematográfica São Luiz pelo short em exibição naquele cinema, que uma platéia em geral moleque, como é a carioca, recebeu com tenso silêncio cuja existência se podia palpar quase fisicamente. Trata-se de uma pequena metragem sobre a seca no Nordeste, especialmente no Ceará - e o cinegrafista, embora tivesse filmado meio à beça (me parece que não houve um roteiro, ou mesmo um planejamento prévio), quase consegue transmitir a realidade do flagelo que pesa sobre essa imensa e trágica região. 
Certas imagens me lembraram, numa espécie de antítese, as de Parc Larenz no seu famoso documentário sobre o Mississipi, chamado The River. As cenas que mostram os retirantes a caminho, em seu êxodo voluntário, a fugir da morte certa pela fome e pela sede, nas planícies assoladas, são indicativas do potencial dramático do flagelo e de suas incríveis possibilidades cinemáticas, com vista a ajudar a debelá-lo. Aí está um assunto a pedir a mão de um Cavalcanti num documentário como ele os sabe fazer, ou num filme de ficção à base de uma das histórias existentes, tais as de Rachel de Queiroz ou Graciliano Ramos. 

A caatinga nordestina foge felizmente ao teor excessivamente plástico da paisagem, por exemplo, mexicana - que um cineasta de gênio, Eisenstein, soube aproveitar maravilhosamente, mas que tem constituído um entrave, pelo perigoso e fácil fascínio que exerce, mesmo a um cinegrafista do talento de Gabriel Figueroa. O sertão brasileiro do Nordeste é baço e íntimo em sua mudez, sem planos evidentes, sofrendo de uma indistinção que é a sua melhor qualidade de um ponto de vista de filmagem. Eu o percorri uma vez, no interior de Pernambuco, e não me lembro de nada, dentro desta grande pátria, que mais e melhor me tivesse comunicado a sua silenciosa angústia social, o seu imenso drama que de tão imenso a gente às vezes, na agitação desta doida capital, chega na esquecer ou perder de vista. 

Parabéns, de novo, à Cinematográfica São Luiz e ao seu cinegrafista. Que a empresa prossiga neste bom propósito de mostrar o Brasil a brasileiros - um Brasil sem máscaras, tanto o bom como o ruim, e capaz de tocar, como este de que falei, o coração das platéias a quem o cromo, o luxo, o falso realismo, o gosto da violência e o pseudo-social de Hollywood vêm indiferentizando.