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Carta ao físico Occhialini

A Manhã , 7 of May of 1942

A nossa conversa de outro dia, meu caro Occhialini, deixou-me, além da tensão intelectual provocada por suas colocações cinematográficas, numa grande angústia poética. É que você, homem da física (e eu diria melhor: da metafísica, no sentido menos filosófico da palavra - se é que possível sobrepor assim duas ordens do mesmo conhecimento), vê as coisas num mundo do qual eu ando afastado, ai de mim, há muito tempo. Esse mundo "das origens", onde um dia, num poema, via a música como a essência de todas as coisas, como a sabedoria por excelência - espécie de vibração do caos primitivo ante a idéia da encarnação da matéria divina -, esse mundo, diria eu, que é o "seu mundo", que eu quisera fosse o meu mundo, causa-me um terror pânico. Nunca poderei me esquecer do nosso Marcelo Damy de Sousa Santos - nós dois num quarto em Londres, no dia justo em que o destino da guerra tomava forma em Munique, dia de extremo nervosismo e perplexidade para a Inglaterra - falando-me sobre raios cósmicos, eu deitado na cama, ele passeando exaltado pelo quarto, num arrebatamento lírico que me pôs em face mesmo do mistério original da Criação. No céu, ouvia-se o ruído dos aviões, invisíveis, guardando Londres contra a possibilidade de um bombardeio alemão. Mas isso tudo esqueceu-se, tornou-se o ruído confuso das máquinas da vida trabalhando no vazio originário as formas primeiras da harmonia, da ordem, do amor, da morte, da ressurreição. Vi, juro que vi, com o cinema de meus olhos, o panorama alucinante da Criação permanente; ouvi o bombardeio dos raios cósmicos sobre a superfície da Terra, milagre de desenho animado anti-"fantasia", pois que vivia sem cor, sem som, sem voz, com o traço puro, mas onde as estrelas podiam muito bem ser galinhas brancas pondo os seus ovos luminosos sobre os campos do mundo. 

Desde esse dia o Marcelo passou a ser uma superstição para mim. Tenho por ele, por esse menino tocado de gênio, uma verdadeira veneração. Nem sei se ele sabe disso; aliás, não importa. Mas para o que eu quero lhe explicar, é muito importante. O cinema é uma arte (digamos arte, mesmo a contragosto) essencial, nunca duvide disso. Ela existe à base de toda a realidade da imagem, imagem aqui considerada no seu sentido mais amplo. O cinema são os olhos do primeiro homem em êxtase contínuo, em descoberta contínua de todas as imagens, da imagem pura, que é a sua própria continuidade. Não sei se você me entende como eu quisera que você me entendesse. Pena é que não possa lhe dizer mais longamente, mais metodicamente, mais cientificamente, até chegar a um ponto de onde brotasse a luz. Paciência.

Provisoriamente, dir-lhe-ei o seguinte: para mim, o cinema, como a música ou a poesia, é um "estado" mais que uma arte. A nossa sede de formas deu-lhe um nome e criou-lhe uma técnica própria. Mas realmente ele existe em tudo, em tudo o que é sucessão e ritmo de imagens. O pensamento é essencialmente cinemático, sobretudo quando não "visualiza". Eu desconfio do pensamento ou da emoção que "visualiza". Desconfio de Debussy, desconfio de Wagner, desconfio de tudo que excita mais do que "se abandona". Chaplin não visualiza, veja você bem. Nem Bach, nem Shakespeare, nem Rilke. É preciso não ir buscar a essência do cinema na pantomima apenas. Não: isso é uma síntese, mas não é toda a síntese. O burro que vai molemente pela rua com os olhos dirigidos pelas viseiras, realiza um écran muito mais perfeito que o de todas as câmeras do mundo, as mais astuciosas, as mais simples. 

Meu caro Occhialini, tudo isso está me saindo do lápis, diretamente para você. Muita gente vai me achar pedante, quem sabe você mesmo. Mas acredite que veio num fluxo só, nenhuma das formas que procurei para dizer-lhe essa coisa tão simples me agrada mais que a última, a do burro. Há nela o movimento, a sucessão, a espontaneidade, a luz, a visão, enfim. Animal introspectivo, o burro é o cineasta por excelência. Sans blague. Você entende, não?