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Carta aberta a Lena Horne

A Manhã , 17 of December of 1943

Em crônica de outro dia, eu tinha prometido escrever qualquer coisa só sobre você, Lena Horne, ou melhor, Lena, ou melhor Leninha (você me permite que a chame assim?). Poderia escrever uma ode, uma elegia, um acróstico, um epitalâmio para você, Lena Horne, poderia dar pantana, andar sobre as mãos, dançar clássico, vociferar em logradouros públicos, tomar conta de toda a sua propaganda, Lena Horne, porque você não existe, mulata, de tão capitosa, de tão simpática - como você é simpática! -, de tão desmilingüintemente bonita que você é. Vou lhe escrever apenasmente uma carta, minha cara, porque a minha posição no quadro-negro da sociedade obriga a uma certa discrição, que, aqui entre nós, eu lhe direi que é fingida. Se eu pudesse, vivia fazendo seu retrato (ah, a desvantagem dos escritores! não têm modelo, não têm nada...) - feito meus amigos Candinho e Graciano vivem fazendo, retrato de moça bonita, porque vai, vai ver mesmo, contando a matemática dos egípcios, a escultura dos gregos, e dobre com a filosofia ocidental, e ponha mais a Renascença italiana, e venha de lá toda a poesia em língua inglesa... não há nada como moça bonita. 

Você é absurda, Lena Horne, é esdrúxula, é bem patinada como as Vênus dos jardins. Só de vê-la... estremeço, como se você tivesse eletricidade, que aliás, você tem, se tem! Você e eu somos dois pólos elétricos, duas partículas cósmicas, dois micróbios de malária se encontrando nos glóbulos vermelhos do amor. Você e eu somos uma grande atração misteriosa, e creio que, em vista disso, o papel seria nos encontrarmos rapidamente para um chá - que idéia! -, para um uísque ou dois ou três, num bar qualquer tranqüilo, onde não haja perigo de entrar essa pessoa que não gostou do fato de Waldo Frank acentuar em seu livro as qualidades do homem negro brasileiro, e que pelo nome parece ser mulher, uma tal dona Povina Cavalcanti, que eu não conheço e faço muito gosto em não conhecer. Lena Horne, você é pecado puro, e seja sempre assim. Enquanto Metro -Goldwyn-Mayer mantiverem seu contrato - Lena Horne! -, você terá para você garantidas todas as colunas que quiser menos a quinta, que essa ninguém faz contra você, ou só mesmo passando por cima do meu cadáver. Sua carinha, que maravilha! Seu sorriso! Eu consigo ouvir seu sorriso!, Lena Horne. Nele há guizos, chocalhos, reco-recos, pandeiros, pistons, clarinetas e golpes de boogie em piano. Seu riso é carnaval, e sua ausência da tela, uma única e grande quarta-feira de cinzas. Com perdão da palavra, mas eu vos amo, sabe, Lena Horne.